TRAGÉDIA DE CHITIMA

A pacata Vila de Chitima, sede do Distrito de Cahora Bassa, na Província de Tete, amanheceu sob luto no sábado, dia 10 de Janeiro de 2015, com notícias sobre a morte de dezenas de pessoas aparentemente vítimas de intoxicação alcoólica.

As vítimas tinham consumido uma bebida alcoólica de fabrico caseiro, conhecida por “pombe”, confeccionada com base na farinha de mapira ou milho.

As boas colheitas nas últimas safras propiciaram a produção do “pombe” em grandes quantidades, correspondendo à procura por parte da população e não só, sobretudo devido ao seu preço de venda que é acessível para a maioria dos seus consumidores.

No geral, não há fim-de-semana em Chitima, como noutros povoados, vilas e nos bairros de lata e caniço em toda a Província de Tete, que não seja condimentada pelo “pombe”. Aliás, na Cidade de Tete e na Vila de Moatize, consome-se pombe ao longo da semana, de segunda a segunda-feira nos bairros pobres. Os produtores convencionaram calendarização do consumo alternado de pombe pelas casas de cada bairro para evitar concorrência desleal e conflito de interesses.

Só que o dia 10 de Janeiro de 2015 ficará marcado na história da pacata Vila de Chitima e de toda a Província de Tete, pela desgraça que o consumo daquela bebida levou àquela pobre comunidade.

A tragédia começou no dia 9 de Janeiro, quando um grupo de pessoas regressavam do funeral de uma jovem que perdeu a vida no Bairro Cawira B. Depois do enterro, as pessoas concentraram-se na banca da cidadã Olívia Olocane para beber alguns copos de “pombe” e afagar as mágoas pela perda do seu ente querido.

Segundo testemunhas e alguns sobreviventes, o produto estava tão bom que originou uma grande concentração de consumidores que, sem imaginar que houvesse algum perigo à espreita, iam consumindo pombe, como era de costume no naquela e naquele dia programado em todas as semanas.

As testemunhas dizem ainda que, porque nas imediações da sua banca havia o referido falecimento, a dona de casa, Olívia Olocane, interrompeu a venda da bebida para ir prestar pêsames e participar nas cerimónias fúnebres na companhia da sua filha adulta, do sobrinho e do genro. As exéquias fúnebres da malograda jovem ocorreram no cemitério local de N´sanangwe.

Para zelar pela bebida, acondicionada num tambor com capacidade para 210 litros, deixaram o filho mais novo e alguns miúdos da zona. No regresso da cerimónia, segundo se conta, Olívia Olocane retomou o seu negócio, desta vez com mais clientes que também regressavam do funeral.

As pessoas que consumiram a bebida antes de Olívia Olocane ir participar nas exéquias fúnebres não ficaram intoxicadas, o que se pressupõe que, durante a sua ausência, alguém estranho teria envenenado a bebida por algum motivo, aproveitando alguma distracção dos miúdos a que Olívia Olocane havia confiado a guarda do tambor de pombe.

Após o reinício da sessão de venda, a bebida disponível foi rapidamente consumida e, até ao cair da noite, não havia praticamente nenhum stock. Entretanto, já na madrugada de sábado, dia 10, o filho menor da família Olocane começou a queixar-se de uma diarreia forte e a contorcer-se com dores musculares, para dez minutos depois o mesmo mal-estar apossar-se de Olívia Olocane que perdera a vida momentos depois. Pouco tempo depois, a filha viria também a perder a vida.

Enquanto os familiares tratavam de verificar as circunstâncias da morte de Olívia Olocane e filha, estava a falecer o filho e, a caminho do Centro da Saúde de Chitima, morreu o genro.

Estas mortes chamaram a atenção das autoridades sanitárias e policiais, que destacaram equipas para a residência da malograda, para averiguar o que se estaria a passar. Chegados ao local, foram informadas que as vítimas tinham estado, no dia anterior, a beber “pombe” e que os restos da bebida se encontravam num tambor.

Na vasculha feita pelas autoridades, foram encontrados três objectos estranhos, nomeadamente um frasco de 200 ml, vazio e sem qualquer inscrição, uma garrafa de água mineral de 500ml, igualmente vazia, e um pedaço de madeira amarrado aos dois objectos que aparentemente fazia peso para estes não flutuarem.

Enquanto se recolhiam estes artigos para a unidade sanitária para perícia, eis que, por volta das 7.00 horas da manhã do mesmo sábado, começa uma entrada massiva de pessoas padecendo de diarreias e dores musculares. Por volta das 10.00 horas, o número de óbitos começou a subir de forma preocupante e, cerca das 16.00 horas, já 29 pessoas tinham sido confirmadas como mortas em Chitima.

O número viria a subir para 54 por volta das 9.00 horas da manhã do domingo, dia 11, com 40 no Centro de Saúde de Chitima e as restantes no Hospital Rural de Songo, porque uma parte dos que estiveram na cerimónia fúnebre da jovem provinha da Vila do Songo que fica sensivelmente a 20 km de Chitima, que depois de ingerirem a bebida retornaram às suas casas.

Nas enfermarias do Centro de Saúde de Chitima, já estavam sob cuidados médicos acima de 170 doentes e as entradas eram em massa, tal como as mortes.

A casa mortuária de Chitima, sem sistema de frio, tornou-se pequena demais para tantos cadáveres e, em pouco tempo, ficou repleta de corpos sobrepostos no chão e outros ainda depositados no recinto do Centro de Saúde.

Em pouco tempo, o Centro de Saúde de Chitima ficou abarrotado de pessoas, familiares, amigos e curiosos que se fizeram ao local para reconhecer corpos sem vida, para acompanhar algum outro doente ou para depositar mais um cadáver. O número de mortos assim como de entradas no banco de socorros foi subindo. Até as 18.00 horas de domingo já tinha atingido os 69 mortos.

O que se diz em Chitima

Correm nos bairros da vila de Chitima rumores segundo os quais a bebida vendida por Olívia Olocane foi envenenada com recurso a bílis ou cérebro de crocodilo que, segundo crenças locais, qualquer deles é um produto com um elevado teor de veneno e que pode levar à morte em pouco tempo. Alternativamente, pode ter sido cérebro de burro, tido igualmente como altamente venenoso.

Olívia Olocane tinha a fama de fabricar pombe de boa qualidade em Chitima e em grandes quantidades, chegando a atingir os mil litros por semana. Ademais, comenta-se o facto de “pombe” de Olívia Olocane sempre esgotar, o que poderá ter criado rivalidade com outras produtoras daquela bebida, que aparentemente perdiam os clientes a favor de Olocane.

Algumas correntes em Chitima acreditam, por isso, que terá sido uma das concorrentes de Olívia que contratou serviços de alguém que se aproveitou da ausência da dona, no funeral da vizinha na tarde daquela sexta-feira, dia 9 de Janeiro de 2015, para introduzir o veneno no tambor da bebida.

A intenção, segundo se aventa, era provavelmente de apenas pregar uma partida a Olívia Olocane. Acreditou-se vagamente que o veneno apenas provocaria dores estomacais e diarreias aos seus clientes, sem, no entanto, provocar mortes como acabou por acontecer.

Outras correntes de opinião nos bairros de Chitima acreditam que o alegado veneno pode ter sido adquirido dos caçadores furtivos que operam no Zimbabwe e que, alegadamente, usam o produto para envenenar elefantes para a extracção de marfim.

De recordar que Chitima faz fronteira com o Zimbabwe, sendo igualmente verdade que circulam na região muitos elefantes que atravessam a linha fronteiriça para beber água na albufeira de Cahora Bassa, que dista a cerca de 40 quilómetros de Chitima.
  
Presume-se, igualmente, que devido ao impacto criado pela situação, o seu mentor se tenha suicidado de remorsos.

Equipas da Saúde em peso na Vila de Chitima

A intervenção do pessoal da saúde não tardou em Chitima. Já no sábado, com o surgimento dos primeiros casos, a Directora Distrital da Saúde informou à tutela provincial sobre a necessidade de se providenciar, rapidamente, meios humanos para atender a situação.

Apesar de se ter tratado de um final de semana, foram recrutados 30 profissionais, entre médicos, enfermeiros e farmacêuticos que, carregados de kits de trabalho e fármacos para reforçar o stock, rumaram para Chitima. Durante a noite de sábado estiveram envolvidos num intenso trabalho, quer de remoção dos cadáveres como de atendimento dos pacientes que davam entrada.

Os distritos vizinhos de Mágoè e Changara enviaram as suas equipas que reforçaram os hospitais de Chitima e do Songo e, na manhã de domingo, era notória a movimentação dos familiares junto ao pessoal médico e serventes para a identificação dos corpos. Porque se tratava de uma morte por intoxicação, aos familiares não era permitido manusear os corpos, apenas pessoal especializado podia fazê-lo, mas devidamente protegido.

A Directora Provincial da Saúde, Carla Mosse Lázaro, que desde sábado comandava as operações em Chitima, disse ao nosso Jornal Notícias que a grande atenção era salvar o maior número possível de pessoas internadas na unidade sanitária.

Aquela médica informou que, porque estavam criadas todas as condições clínicas e logísticas em termos de material médico-cirúrgico e pessoal qualificado, não havia necessidade de se transferir qualquer doente para fora de Chitima, estando o tratamento a ser prestado localmente.

“Tivemos casos de pessoas que recebemos e tratámos. Por estarem a melhorar demo-las alta só que horas depois regressaram já em estado crítico e acabaram perdendo a vida na enfermaria”, disse Carla Mosse Lázaro.

Solidariedade de todos os cantos

Movido por esta ocorrência, o Governo provincial encetou diligências para apoiar os familiares das vítimas nas despesas do funeral. Em resposta aos apelos não tardaram os apoios com o fornecimento de meios circulantes e urnas para depositar os corpos.

O Secretário Permanente do Governo provincial de Tete, Samuel Buanar, tomou conta do recado tendo sensibilizado os administradores distritais para disponibilizarem o apoio possível para atender à tragédia. “Conseguimos receber caixões e meios circulantes dos distritos de Moatize, Changara, Mágoè, Angónia, Marávia, o que tornou o processo mais célere no domingo, onde conseguimos enterrar acima de 50 corpos”, disse Buanar.

Acrescentou que o Conselho de Administração da empresa Hidroeléctrica de Cahora Bassa (HCB) disponibilizou 25 urnas e viaturas, bem como uma máquina escavadora para abrir as sepulturas no Cemitério de N´sanangwe.

Outro destaque foi para o empresariado local que esteve em peso quer no apoio no hospital assim como nos funerais, a destacar Domingos Torcida, um dos Administradores da HCB e proprietário do Hotel Afrodisíaco; Bernardo Rato, entre outros que deram a sua contribuição moral e material para minimizar o impacto da tragédia.

A Igreja Católica esteve igualmente em peso com o Bispo da Diocese em Tete, Dom Inácio Saure, que orientou a missa em memória das almas que pereceram e efectuou visitas aos internados no Centro de Saúde de Chitima, que ficou praticamente reduzido no espaço e nas camas para acomodar os pacientes.

Elsa da Barca, Administradora distrital de Moatize, disse após o funeral do grosso das vítimas, que não havia outra maneira de solidarizar com as famílias enlutadas senão levar a Chitima, urnas, pessoal e meios circulantes.

“Trouxemos urnas, viaturas e pessoal para apoiar. Quero agradecer os meus colegas que, sem nenhum incentivo, corresponderam ao apelo e isto significa patriotismo e bom sentido de saber valorizar o sofrimento do outrem”, disse Elsa da Barca.

A Administradora distrital de Changara, Rosa de Nascimento, que se fez ao acontecimento em Chitima, acompanhada de alguns quadros do seu Executivo, referiu que o importante era solidarizar-se com a tragédia e apoiar no máximo do possível aos necessitados.

“A notícia chocou-me bastante. Ainda assim, conseguimos reunir, rapidamente, alguns meus colegas e comprarmos urnas e avançar para Chitima. Foi assim que aconteceu e depois do funeral colectivo estaremos de regresso à Changara”, disse Rosa de Nascimento.

Melhorar legislação sobre matérias afins

O empresário Domingos Torcida apelou ao Governo no sentido de se estabelecer medidas para o controlo da qualidade e teor de álcool nas bebidas tradicionais que normalmente são confeccionada e vendidas nas comunidades.

“‛Pombe’ é uma bebida bastante apreciada nas comunidades devido ao seu preço acessível. Eu mesmo, às vezes, compro para mim ali nas comunidades e até tenho consumido quando estou em cerimónias como falecimento de familiares e de pessoas amigas.

O Governo deve procurar mecanismo para o controlo desta e de toda bebida de fabrico caseiro para se evitar futuros casos semelhantes”, apelou Torcida.

Domingos Torcida, que é membro do Conselho de Administração da HCB, referiu-se, por outro lado, à necessidade de o Governo distrital, em parceria com os agentes económicos locais, reunir e encontrar soluções para a ampliação da Casa Mortuária do Centro de Saúde de Chitima porque a vila está a crescer rapidamente.

“O Governo local tem de se abrir ao empresariado para parcerias nas obras sociais, porque hoje, devido ao crescimento acelerado da Vila de Chitima, não se justifica possuir um quartinho daquele para servir de casa mortuária numa unidade sanitária de referência”, disse o nosso interlocutor.

Para Bernardo Rato, membro da Assembleia Provincial, as autoridades competentes devem trabalhar para o esclarecimento do caso em tempo útil, pois não haverá sossego na região caso não se encontre o culpado desta tragédia.

“Estamos ansiosos em conhecer esta pessoa que praticou esta acção. Qual era a sua intenção e quem são os mandantes, porque esta desgraça não assolou apenas as famílias enlutadas, como a todos os residentes de Chitima, do Distrito, da Província e do país inteiro”, disse Rato.

Tomé Adamo, religioso católico, radicado em Chitima, não escondeu o seu desconforto com a tragédia, tendo acrescentado que ninguém aguenta esta dor implantada por uma pessoa cobarde e tendenciosa que, para satisfazer os seus instintos macabros, tirou dezenas de vidas humanas plantando uma desgraça inesquecível nas famílias enlutadas.

Aquele religioso lembrou às autoridades governamentais da necessidade de estabelecimento de um apoio multiforme às famílias enlutadas, sobretudo às crianças órfãs de país, cujos progenitores perderam a vida como resultado da tragédia.

Celestina Toalha, residente da vila de Chitima, abordada pela Reportagem do Jornal Notícias no Centro de Saúde de Chitima, momentos após um dos funerais, disse que é muito triste o que sucedeu e que, para além de tirar vidas pessoas idosas, matou dezenas de jovens, na sua maioria recém-formados.

“Perdemos quadros, homens e mulheres novas que ainda estavam a despontar para a vida. Temos de encontrar o motivo destas mortes e se foi um crime, as autoridades de direito devem trazer o resultado das investigações”, apelou Celestina Toalha.

Trabalhar para travar mortes

O Ministro da Saúde, Alexandre Manguele, que se posicionou em Chitima à frente de uma equipa de especialistas de vários ramos da Saúde a nível central, disse ao Jornal Notícias que neste momento os especialistas estão no terreno a trabalhar para salvar as vidas dos pacientes internados quer em Chitima como no Songo.

Os médicos especialistas que estão em Chitima, desde a noite de domingo, dia 11 de Janeiro de 2015, estão já envolvidos no tratamento dos doentes assim como em autópsias de alguns dos corpos ainda não enterrados para encontrar possíveis razões que levaram a morte das pessoas.

“As autópsias estão em curso e ainda por estes dias vamos receber os resultados das amostras que foram encaminhadas aos Laboratórios Centrais em Maputo para tirarmos conclusões da razão que provocou a morte das pessoas, porque pombe elas sempre beberam sem problemas”, disse Manguele.

Relativamente aos internados, o titular da pasta da saúde referiu que o número de pacientes reduziu uma vez que, grande parte, recebeu alta depois das melhorias e novos casos já estão abrandados.

“Não sabemos muito bem que tipo de produto é este que provocou a intoxicação e muito menos o seu teor de veneno. O facto é que tratamos as pessoas e apresentam um bom estado clínico e regressam às suas casas, só que volvido algumas horas regressam, por vezes já num estado lastimoso e outros não aguentam e morrem”, disse o Ministro.

Entretanto, equipas constituídas por profissionais da saúde, autoridades da justiça, Governo e partido Frelimo, envolvendo os líderes comunitários estiveram a trabalhar junto às comunidades de Chitima para colher mais depoimentos na tentativa de encontrar possíveis pistas para o esclarecimento do sucedido.

As brigadas estão igualmente a explicar a população sobre o trabalho que o Governo está a executar na recuperação dos doentes e nas investigações para se encontrar as principais causas que levaram à morte dezenas de pessoas depois de ingeriram “pombe”.

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