PORTO DE NACALA UMA PARCERIA PROMÍSCUA ENTRE O ESTADO, MEMBROS DO PARTIDO NO PODER EM MOÇAMBIQUE E INVESTIDORES ESTRANGEIROS
Investigação do Centro de Integridade Pública editada, 06 de Abril de 2016
@verdade, Tema de Fundo, 08 de Outubro de 2016

O nosso país possui um porto natural de águas profundas que esteve adormecido durante várias décadas. Porém, quando surgiram no horizonte potenciais grandes clientes estrangeiros, o Estado decidiu concessionar esse porto a uma empresa privada que deveria ter investido na sua reabilitação e modernização, mas não o fez.

Para o porto de Nacala funcionar, Moçambique teve que endividar-se, em cerca de 285 milhões de dólares norte-americanos, mas nem assim recuperou a gestão desta infra-estrutura de importância estratégica e que hoje gera lucros.

Para quê foi feita e é mantida, até 2020, esta Parceria Público-Privada? Porque os privados são os próprios agentes de Estado que decidiram a quem concessioná-lo, a começar pelo antigo Presidente da República, Armando Guebuza, passando pelos ex-Primeiro-Ministros, Mário Machungo e Aires Aly, antigos deputados e o juiz do Conselho Constitucional, e até gestores seniores da empresa pública de Caminhos-de-Ferro de Moçambique.
 
Na segunda metade da década de 1990, dispondo de informação estratégica sobre as mudanças que estavam a acontecer na economia nacional, políticos moçambicanos iniciaram a corrida para a criação de empresas em forma de sociedades de gestão e participação nos negócios públicos. Estas empresas eram orientadas para realizar negócios com o Estado, num contexto de liberalização da economia nacional.

Uma dessas empresas foi a Sociedade para o Desenvolvimento do Corredor de Nacala (SDCN), constituída a 22 de Janeiro de 1998, em Maputo, em forma de Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada (S.A.R.L), já com o objecto social de “Realização de estudo de viabilidade da linha férrea do porto e da baía de Nacala, negociação com o Governo de Moçambique do contrato de concessão do Porto de Nacala e da rede ferroviária do corredor de Nacala, bem como a constituição de empresas destinadas a gerir e desenvolver o porto e a linha férrea de Nacala e o Corredor de Desenvolvimento de Nacala”.

Tratando-se de uma sociedade anónima, as empresas accionistas da SDCN nunca foram reveladas, mas o Centro de Integridade Pública (CIP) apurou que eram nove empresas na altura em que aconteceu a concessão: as estrangeiras Edlows Resources e Railroad Development Corporation (com 51% do capital) e os investidores nacionais Consórcio Cabo Delgado, Gestão e Transportes, Gestão e Desenvolvimento de Nampula, Moçambique Gestores, Niassa Desenvolvimento, Sociedade de Tecnologias Portuárias (com 33% do capital) e ainda a Nacala Comércio e Investimentos (16% do capital).

A investigação do CIP apurou os seguintes accionistas entre os investidores moçambicanos:
(i)     a Gestra - Gestão e Transportes (criada em 1997 e que tem como accionistas/outorgantes Francisco Ilídio de Rocha Dinis, João de Passos Fonseca Vieira, Manuel Henriques Teixeira, Júlio Dias Lopes Hingá, Rui Cirne Plácido de Carvalho Fonseca, Gabriel Mabunda, Carlos Fernando Bambo Nhangou, Eunice Maria António, Carneiro Maria António Rothenberger e Rui Ferreira dos Santos);

(ii)    a MG - Moçambique Gestores (criada em 1996 por Armando Emílio Guebuza, Maria da Luz Dai Guebuza, Mário António Dimande, Nora Vicente Maculuve, Teodato Mondim da Silva Hunguana, António Américo Amaral Magaia (Sócio da SOMOESTIVA, a única empresa com a participação de Filipe Nyusi), Argentina da Conceição Nhantumbo Magaia, Benjamim Alfredo, Isabel Luís Chaúque Alfredo, Manuel Alexandre Panguene, Mário da Graça Fernando Machungo, Augusto Joaquim Cândido, Raimundo Manuel Bila, Cadmiel Filiane Muthemba, Maria Helena Paulo, Gabriel Mabunda, Miguel José Matabel, Armando Francisco Cossa, Bartolomeu Augusto Guiliche, Moisés Rafael Massinga, Filor Nassone, Venâncio Jaime Matusse, Fernanda Carolina Betrufe Manave Matsinha, Mariano de Araújo Matsinhe, Rosário Mualeia, Eduardo Silva Nihia, Bonifácio Gruveta Massamba, Orlando Pedro Conde, Abel Ernesto Safrão, Eugénio Numaio, Arnaldo Tembe, Flora Manuel Arnaldo Tembe, Feliciano Salomão Gundana, Aires Bonifácio Baptista Ali, António Correia Fernando Sumbana, Pires Daniel Manuel Sengo, Alfredo Fontes Selemane Namitete);

(iii)   o Consórcio Cabo Delgado (criada em 1998 e que representa os interesses de generais do norte, com Alberto Chipande à cabeça).

No ano 2000 foram assinados os contratos da concessão, a escolha da concessionária aconteceu sem concurso público, mas só no início de 2005 consumou-se a transferência efectiva da gestão Porto de Nacala dos CFM para o consórcio Corredor de Desenvolvimento do Norte (CDN), que foi formado em 2001 pelos Caminhos-de-Ferro de Moçambique com 49% e pela Sociedade para o Desenvolvimento do Corredor de Nacala com a maioria de 51%.

Os contratos de concessão do sistema ferro-portuário do Norte foram assinados por Tomaz Salomão, então Ministro dos Transportes e Comunicações, em representação do Governo de Moçambique; Rui Fonseca, então PCA dos CFM, em representação desta empresa; Domingos Bainha, Administrador Executivo dos CFM; Alberto Chipande, PCA da CDN; Fernando Amado Couto, Administrador da CDN.

O maior porto natural de águas profundas da costa oriental de África

O Porto de Nacala é o terceiro maior porto de Moçambique, em termos de quantidade de carga manuseada. É o maior porto natural de águas profundas da costa oriental de África. Esta particularidade do porto permite a entrada e saída de navios sem limitação de calado, 24 horas por dia, e não necessita de dragagem.

O porto foi herdado da administração colonial. Em Outubro de 1951 procedeu-se à abertura do porto ao tráfego de navios. Tal como muitas infra-estruturas construídas no período colonial, o Porto de Nacala sofreu degradação contínua ao longo dos anos. Entretanto, devido à sua localização estratégica, continuou a desempenhar um papel importante para a importação e exportação de mercadorias para os países do hinterland, sendo os principais clientes o Malawi e o norte do país.

Segundo dados dos CFM, o porto foi reabilitado, entre 1984 e 1996, por meio de um financiamento da Finlândia, orçado em 196 milhões de marcos finlandeses.

O Porto de Nacala tem três terminais, dos quais dois foram concessionados à CDN. O Terminal de Carga Geral, de 631 metros de comprimento, calado de 9.7 metros, capacitado para manusear 2.400.000 toneladas anualmente, possui ainda 8 armazéns, com uma capacidade de 50.000 toneladas. Este terminal foi concessionado à CDN.

Igualmente, foi concessionado o Terminal de Contentores, com 372 metros de cumprimento, que possui um calado de 14 metros, capacidade de manuseamento de 75.000 TEU´s anuais, possibilidade de parqueamento de 4.982 contentores e 21 pontos de energia para contentores frigoríficos.

Ficou sob gestão directa dos CFM o Terminal para Granéis Líquidos, afecto ao cais 4 do Terminal de Carga Geral, com 9.7 metros. Está ligado a depósitos de combustíveis através de um “pipeline”, com 3.5 quilómetros, e ligado a depósitos para óleos vegetais com uma capacidade total de 2.400 toneladas.

Saída de norte-americanos entrada de brasileiros e japoneses

Ao longo dos 17 anos da sua existência, houve entrada e saídas de accionistas na estrutura da Sociedade para o Desenvolvimento do Corredor de Nacala, com base em compra e venda de participação, negócios cujos principais termos e os nomes dos compradores nunca foram divulgados.


Todos estes negócios tinham como base o Porto de Nacala e a Linha do Norte, os únicos activos que a SDCN detinha em Moçambique. Dentre entradas e saídas de accionistas da SDCN, destaque para a venda de participação das duas empresas norte-americanas Edlows Resources e Railroad Corporation à Insitec de Celso Correia, em 2009, e a posterior revenda da participação da Insitec à multinacional brasileira Vale, em 2010, que explora carvão mineral em Tete.

Devido há quase uma década sem que a CDN realizasse obras de manutenção, o Porto de Nacala ficou em avançado estado de degradação afectando as operações portuárias. Moçambique recorreu ao Japão para financiar, primeiro, uma “reabilitação de emergência” e, depois, para a modernização.

Através da Agência Japonesa de Cooperação (JICA), até 2015, foram desembolsados 310 milhões de dólares norte-americanos, 25 milhões como donativo e o restante como empréstimo.

O interesse do Japão em financiar o projecto de desenvolvimento do Porto de Nacala está relacionado com os interesses que o país asiático tem no Corredor de Nacala, particularmente no ProSavana, e cuja viabilidade está dependente da operacionalidade do Porto de Nacala e da Linha do Norte.

Talvez por isso, depois de em 2013 a Vale adquirir 18% da participação dos investidores nacionais, revendeu metade dos seus 85% ao maior grupo corporativo do Japão, a Mitsui, em 20114/2015.

Enquanto a concessão gerava prejuízos para o Estado, havia quem se beneficiava dela. São alguns accionistas da SDCN que exploraram o negócio de venda das participações.

Durante muito tempo, a sociedade CDN não distribuía dividendos aos seus accionistas devido aos prejuízos; em 2010 o prejuízo da sociedade atingia 25.7 milhões de dólares. Porém, a falta de auditoria às contas da sociedade, pelo menos entre 2001 e 2009, não permite apurar a veracidade desse prejuízo.

Sem partilha de rendimentos, os accionistas da SDCN encontraram forma de realização de negócios de compra e venda de acções, tendo como activos para atrair os compradores de acções o Porto de Nacala e a Linha do Norte, mas principalmente o Porto de Nacala, a infra-estrutura mais importante e lucrativa.

Entrada e saída da Insitec, de Celso Correia

O Grupo INSITEC, cujo presidente é o actual Ministro da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural, Celso Correia, foi uma das beneficiárias deste tipo de negócio. A INSITEC entrou na SDCN, comprando a participação da EDR e RDC em 2008.

Com a compra das acções das duas empresas americanas, a Insitec ficou com a maioria do consórcio SDCN (51%) e, por conseguinte, com posição de peso na CDN. Há informação que indica que a INSITEC não chegou a pagar pelas acções da RDC e EDR. Serviu apenas de intermediário entre a Vale e as duas empresas americanas. Ou seja, usou o dinheiro da Vale para pagar a RDC e EDR.

A entrada da Insitec na SDCN promoveu mudanças de vulto na administração do CDN, sendo o grande destaque a saída de Alberto Chipande da presidência do CDN, substituído pelo próprio Celso Correia.

A liderança do CDN, com a entrada da Insitec, passou a ser a seguinte: Presidente do Conselho da Administração: Celso Correia (representando a Insitec); Administradores: Eduardo França Magaia e Givá Remtula (Insitec); Fernando Couto (STP); Osório Lucas, Adelino Fortes Mesquita e Domingos Bainha foram nomeados Administradores em representação dos CFM, detentora de 49% da CDN.

Durante o tempo em que a INSITEC esteve na liderança da CDN, não realizou nenhum investimento de vulto na melhoria das infra-estruturas. É por isso que até 2011, nos relatórios dos CFM, reclamava-se a falta de manutenção das infra-estruturas.

A INSITEC não levou muito tempo na direcção do CDN. Vendeu a sua participação à Vale, em 2010.

Sabe-se que, antes da entrada da INSITEC no CDN, houve negociações muito avançadas com a Vale para que esta comprasse a parte das empresas americanas. Inexplicavelmente, o negócio não se consumou. Só que cerca de um ano depois da mesma Vale ter aparentemente desistido de comprar as acções da Railroad Development Corporation e Edlows Resources na SDCN, viria a comprá-las, mas desta vez à Insitec.

Os valores envolvidos nas duas transacções realizadas pela INSITEC – compra de acções da Railroad Development Corporation e Edlows Resources e posterior venda à Vale – nunca foram tornados públicos em Moçambique. A ocultação de valores dos negócios baseados em empreendimentos públicos é uma grande demonstração da falta de transparência na gestão desta Parceria Público-Privada.

Entretanto, no relatório de desempenho da Vale, feito para investidores, consta que a mineradora brasileira desembolsou, em 2010, 21 milhões de dólares norte-americanos para a compra da participação na SDCN.

Não foi referido ainda se, com estas transacções, houve pagamento ao Estado, em forma de mais-valias, na medida em que houve rendimentos extraordinários não esperados.

Separação de gestão do Porto de Nacala da Linha do Norte e início de cumprimento

Como parte do trato da venda da participação dos investidores nacionais na SDCN para a Vale, negociou-se também a separação da gestão das duas infra-estruturas concessionadas: o Porto de Nacala e a Linha do Norte.

Assim, a Linha do Norte ficou sob a gestão do CDN. Na actual estrutura, a SDCN mantém 51% da CDN e 49% são dos CFM. As mudanças ocorreram na SDCN. A Vale é a accionista maioritária, com 85%. Os restantes 15% são detidos pelos investidores nacionais.

O Porto de Nacala passou para a gestão da Portos do Norte, uma empresa criada para o efeito, em 2012, na qual se aglutinam os interesses dos chamados investidores nacionais mais os CFM.

Os CFM detêm 30% da Portos do Norte. Os restantes 70% são distribuídos entre as empresas: Gedena, GESTRA, MG, STP Niassa Desenvolvimento e Cabo Delgado. A percentagem de acções detida por cada uma destas empresas não foi possível apurar.

A separação da gestão do Porto de Nacala e da Linha do Norte consumou-se a 15 de Março de 2013. De igual forma não foram revelados os valores envolvidos na transacção.

Entretanto, com a Vale a assumir 85% da CDN e a separação da gestão do Porto da Linha Férrea, houve algumas melhorias na gestão do Porto. A nova gestão do Porto, a cargo da Portos do Norte, começou a cumprir as suas obrigações, pagando impostos ao Estado atempadamente, bem como a gerar e pagar dividendos aos seus accionistas. Em dois anos, o Porto de Nacala gerou mais de 167 milhões de meticais de receitas fiscais para o Estado.
No mesmo período de 2013/14, os dividendos gerados para os accionistas da empresa concessionária alcançaram mais de 117 milhões de meticais, dos quais 30% foram para os CFM, empresa pública a que se atribuíram 30% na concessão do Porto de Nacala.

Renovação da concessão condicionada pelo acordo de retrocessão de crédito

A concessão do Porto de Nacala e da Linha do Norte termina em 2020. O grande interesse da concessionária é garantir a renovação da concessão dos dois empreendimentos, devendo, para tal, manifestar interesse ao Governo com antecedência de pelo menos 36 meses (três anos).

Parece certo que haverá renovação, uma vez que parte da Linha do Norte forma o Corredor Logístico do Norte (CLN), construído pela Vale e detido pela Vale, Mitsui e CFM. A Vale pretende usar a linha para escoamento do carvão de Moatize para Nacala-a-Velha, via Malawi. Isto deve garantir a continuidade da concessão da Linha do Norte à CDN.

Dúvidas poderiam persistir sobre o Porto de Nacala, uma vez que a Vale não precisa deste porto para o escoamento do carvão de Moatize. Mas o Porto de Nacala é do interesse do Japão, porque é indispensável na logística do ProSavana. É por isso que a Mitsui entrou na SDCN, comprando metade da participação da Vale.

É assim que, apesar do Estado estar a reabilitar o Porto de Nacala com fundos próprios, devido à incapacidade mostrada pela concessionária de intervir, é certo que haverá renovação da concessão.

Para recuperar os cerca de 285 milhões de dólares norte-americanos (de crédito) investido na reabilitação do Porto de Nacala, o Governo precisa de assinar acordo de retrocessão de crédito com a concessionária do Porto (a CDN). Os termos do acordo ainda não são claros, mas essencialmente deve-se garantir que o dinheiro a ser desembolsado à JICA provenha das receitas do Porto de Nacala, sob gestão do CDN.

Até 2020, ano em que terminam os presentes contratos de concessão, não se terá pago o valor investido na reabilitação do Porto.

Assim, a renovação da concessão do Corredor de Nacala à CDN será usada como garantia para a efectivação do acordo de retrocessão de crédito concedido pela JICA ao Estado. Nestes ternos, o Governo não terá muito espaço de manobra para negociar novos contratos de concessão que sejam favoráveis aos interesses do Estado.

Da parte dos CFM há claro interesse de recuperar o empreendimento para gestão própria, até porque o Porto de Nacala foi o último empreendimento concessionado e depois interrompeu-se o processo. Este interesse dos CFM parece certo que não tem correspondência da parte do Governo.

Outro grupo preocupado com a renovação da concessão são os políticos empresários que garantiram a gestão do Porto de Nacala de 2013 a 2020. O seu interesse é que a concessão seja renovada e a gestão do Porto de Nacala continue com a Portos do Norte, como subconcessionária.

Comentários

Mensagens populares deste blogue