HÁ QUEM
TENHA MEDO QUE O MEDO ACABE
Por Mia Couto, 2011
(Texto publicado
a 19 de Fevereiro de 2014)
A fala que se segue é de 2011. Foi
proferida durante uma Conferência em Estoril, Portugal, numa mesa redonda sobre
a segurança, onde o proeminente escritor moçambicano Mia Couto, um dos justos vencedores
do Prémio Camões em 2013, o mais importante da língua portuguesa, leu um texto por
si escrito para a ocasião e que tem muito, mas muito mesmo, a ver com várias coisas
da nossa vida.
Num simples e sucinto discurso, Mia
Couto começou por dizer o seguinte:
Bom, nada mais inseguro do que um escritor, numa
conferência sobre segurança. Um escritor que se sente um pouco solitário,
porque foi o único convidado nesta e na anterior edição.
Preciso de um abrigo, preciso de um refúgio. É um
texto que vou ler... O Presidente tinha dito que eu devia falar
espontaneamente. Não sou capaz de o fazer em sete minutos. Por isso, eu escrevi este texto que vou
ler e chama-se Murar o Medo.
MURAR O MEDO
O medo foi um dos meus primeiros
mestres.
Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas,
aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já
era param me guardarem. Os anjos actuavam como uma
espécie de agentes de segurança privada das almas.
Nem sempre os que me protegiam sabiam da
diferença entre o sentimento e a realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando
me ensinavam a recear os desconhecidos.
Na realidade, a maior parte da violência
contra as crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e
conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho
engano de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos.
Os meus anjos da guarda tinham a
ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido
apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha
cultura e do meu território.
O medo foi, afinal, o mestre que mais me
fez desaprender.
Quando deixei a minha casa natal, uma
invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No
horizonte, vislumbravam-se mais muros do que estradas.
Nessa altura algo me sugeria o seguinte:
que há, neste mundo, mais medo de coisas más do que de coisas
más propriamente ditas.
No Moçambique colonial em que nasci e
cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam
crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência e um ateu
barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os
fantasmas: morreram quando morreu o medo.
Os chineses abriram restaurantes à nossa
porta, os ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis e Karl Marx, o
ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.
O preço dessa construção de terror foi,
no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o
comunismo, cometeram-se as mais indizíveis barbaridades.
Em nome da segurança mundial, foram
colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda
a história. A mais grave dessa longa herança de intervenção externa é a
facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus
próprios fracassos.
A Guerra Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando
rapidamente outras geografias do medo: a Oriente e a Ocidente e, por que se
trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação.
Precisamos de intervenção com legitimidade divina.
O que era ideologia passou a ser crença.
O que era política, tornou-se religião. O que era religião, passou a ser
estratégia de poder.
Para fabricar armas, é preciso fabricar
inimigos. Para produzir inimigos, é imperioso sustentar fantasmas.
A manutenção desse alvoroço requer um
dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam
decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças
domésticas, precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e
menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais, precisamos de mais
exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.
Todos sabemos que o caminho verdadeiro
tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por
exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e
de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”. Aos adversários políticos e
militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias.
O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a
natureza é traiçoeira e a humanidade, imprevisível.
Vivemos como cidadãos, e como espécie,
em permanente situação de emergência.
Como em qualquer outro estado de sítio,
as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e
a racionalidade deve ser suspensa. Todas essas restrições servem para que não
sejam feitas perguntas, como por exemplo, estas: por que motivo a crise financeira
não atingiu a indústria do armamento? Por que motivo se gastou, apenas no ano
passado, um trilião e meio de dólares em armamento militar? Por que razão os
que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exactamente os que mais armas
venderam ao regime do Coronel Kadhafi? Por que motivo se realizam mais
seminários sobre segurança do que sobre justiça?
Se queremos resolver e não apenas
discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e
urgentes.
Há uma arma de destruição massiva que
está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o
pretexto da guerra. Essa arma chama-se fome.
Em pleno século XXI, um em cada seis
seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fracção
muito pequena do que se gasta em armamento.
A fome será, sem dúvida, a maior causa
de insegurança do nosso tempo.
Mencionarei ainda uma outra silenciada
violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres
foi, ou será, vítima de violência física ou sexual, durante o seu tempo de
vida. É verdade que, sobre uma grande parte do nosso planeta, pesa uma
condenação antecipada pelo facto simples de serem mulheres.
A nossa indignação, porém, é bem menor
que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem
nome e, como militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer
perguntas e discutir razões.
As questões de ética são esquecidas,
porque está provada a barbaridade dos outros e, porque estamos em guerra, não
temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de legalidade.
É sintomático que a única construção
humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A Grande Muralha que foi
erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou
conflitos nem parou os invasores.
Possivelmente morreram mais chineses
construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram.
Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria
construção.
Esses corpos convertidos em muro e pedra
são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar.
Há muros que separam nações, há muros
que dividem pobres e ricos, mas não há hoje, no mundo, um
muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens
cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente.
Citarei Eduardo Galiano acerca disto, do
que é o medo global, e dizer: "Os
que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de
nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome, têm medo da comida; os
civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as
armas têm medo da falta de guerras.
E, se calhar, acrescento agora eu: há quem tenha medo que o medo acabe.
Muito obrigado.
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