CORRUPÇÃO NA ÁGUAS DA REGIÃO DE
MAPUTO (1)
Jornal Domingo, 23 de Janeiro de 2017
Domingo inicia
hoje série de reportagens de investigação que apontam para incorrecções em
mapas de gestão na empresa Águas da Região de Maputo que determinaram, em
alguns casos, situações gravíssimas de corrupção. As nossas pesquisas têm como
pontapé de saída o ano 2013, quando aquela empresa começou efectivamente a ser
depenada, e assentam em documentação disponível e várias vezes analisada na
Procuradoria-Geral da Republica, na Inspecção Geral de Finanças, no Tribunal
Administrativo e até em tribunais.
Facto intrigante é que tantas
instituições competentes não conseguem desferir golpe final a males que
penalizam todos nós: afinal o deficiente abastecimento de água a Maputo, Matola
e Vila de Boane resulta de trapalhadas propositadas na gestão, tendo como finalidade
o roubo de dinheiro do erário público.
Como adiante ver-se-á nesta Reportagem
processos de compras de equipamentos e até de produtos químicos levantam sérias
dúvidas relativamente a forma em que determinados processos de procurement foram
conduzidos.
Durante muito tempo, e sobretudo nos
últimos quatro anos, a empresa de águas realizou operações de licitação com
substancial falta de clareza nos cadernos de encargos emitidos para os
concorrentes.
Domingo apresenta, nas linhas que se seguem,
irregularidades constatadas no processo de fecho de contas daquela empresa.
Documentos em nosso poder revelam que a empresa funcionou nos últimos quatro
anos sem possuir um manual de procedimentos contabilísticos com procedimentos e
políticas contabilísticas definidas.
Ou seja: os procedimentos adoptados na
área financeira, durante o período de encerramento de contas, resumiam-se
(resumem-se) muitas vezes, na preparação de reconciliações bancárias e
averiguação de itens pendentes; reconciliação das diferenças apuradas entre o
montante das vendas e dividas de clientes reportados no sistema comercial (aquamatrix) com os saldos registados na
Contabilidade, incluindo a análise de dívidas que se afiguram de cobrança
duvidosa; análise e regularização das diferenças identificadas na inventariação
dos materiais; reconciliação dos balancetes das dívidas a pagar com saldos
reportados na Contabilidade; avaliação da necessidade de constituição de
provisões e especialização de custos e proveitos; conciliação do cadastro do
imobilizado com a Contabilidade e, finalmente, a preparação das demonstrações
financeiras.
Por outras palavras, a empresa Águas
da Região de Maputo, durante muito tempo, funcionou sem procedimentos escritos
relativamente aos aspectos a ter em conta no processo de encerramento de
contas.
CONTAS SOB SUPERVISÃO DE
GESTOR QUE JÁ NÃO PERTENCIA A EMPRESA
As contas que a seguir partilhamos
resultam de auditorias feitas por empresas especializadas e estão apensos em
documentação fundamentada, endossada tanto a Inspecção Geral de Finanças como
ao Tribunal Administrativo.
Em 2013, ano de início das nossas
pesquisas, as contas já não batiam certo, revelando uma diferença, não conciliada
até então, no montante de 5.064.379 meticais entre os saldos de bancos no módulo
de gestão de tesouraria (39.110.928 meticais), os quais serviram de base na
preparação de reconciliações bancárias com saldos de bancos reportados no
balancete geral em referência à data de Agosto de 2013 (44.175.307 meticais).
As reconciliações bancárias
apresentavam itens de reconciliação bastante antigos e que ainda careciam de
esclarecimento. Trata-se de débitos efectuados pelos bancos, mas que não se
encontravam reflectidos nos registos de contabilidade e depósitos efectuados
pela Águas de Região de Maputo que não se encontravam ainda reflectidos nos
extractos dos bancos.
Como se pode depreender, esta situação
representa algum risco acrescido para a própria empresa na medida em que pode
indiciar falhas nos sistemas de controlo, dado que no caso das saídas de
valores em bancos, uma vez que o processo de pagamento é iniciado a nível da
Águas de Maputo, o número de ocorrências destas situações, bem como os
montantes envolvidos, é expectável que fosse muito reduzido, contrariamente à
situação então prevalecente em que o valor total de casos desta natureza, a
data de 31 de Agosto de 2013, ascendia a 15.793.193 meticais.
Por outro lado, relatórios em nosso
poder indicam que a empresa permitia que depósitos permanecessem por um período
longo sem confirmação dos bancos (por exemplo transferências via PayShop, SISTAFE e talões de deposito), o que aliado a manutenção de um número
significativo de contas de clientes sem movimento por longo período e não
restringidas ao acesso a um número muito limitado de utilizadores, aumentava o
risco das mesmas poderem vir a ser utilizadas para ocultar operações de
natureza fraudulenta, o que efectivamente acabou por acontecer envolvendo
alguns gestores seniores.
Em 2013, domingo apurou
que foi reportada uma diferença de 121.505.699 meticais entre o saldo de
clientes no balancete geral (1.210.093.599 meticais) com o saldo reportado no
razão auxiliar de clientes extraído do sistema comercial aquamatrix (1.088.587.900 meticais).
Uma auditoria realizada na empresa
viria a confirmar que, embora a referida diferença carecesse então de uma
reconciliação e análise, era líquido que resultava precisamente de cobranças
efectuadas através do sistema PayShop,
reportadas periodicamente ao Sector Comercial da Água da Região de Maputo pela PayShop Moçambique, e como tal,
regularizadas nas contas correntes de clientes, “mas que a Contabilidade a partir de
determinada altura deixou de considerar para efeitos de regularização do saldo
dos clientes devido à ausência de contrapartida referente às entradas efectivas
de dinheiro em bancos”.
De referir que o montante dos
pagamentos efectuados através de cartões de crédito, no período de Janeiro a 10
de Setembro de 2013, ascendeu a 1.253.826 meticais. No entanto, a
contabilização dos referidos pagamentos na rubrica de despesas foi
efectuada com recurso a extractos bancários, “não
existindo para o efeito qualquer documento externo que suporte de forma
adequada as despesas pagas”.
Consequentemente, e a luz do CIVA,
Código de Imposto sobre o Valor Acrescentado, conjugado com o CIRP, Código de
Impostos sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas, devido à falta de documentos
de suporte, o referido montante foi, nas contas então efectuadas, tributado de
forma autónoma em sede do IVA a taxa de 35 por cento, resultando no montante de
438.839 meticais, valor que não foi considerado como custo para efeitos
fiscais, além do agravamento do montante de 401.224 meticais, resultante da aplicação
da taxa de IRPC de 32 por cento. Deste modo o encargo fiscal em
decorrência do tratamento contabilístico dispensado aos cartões durante o período
em análise saldou-se em 840.063 meticais (401.910 meticais para anos de 2011 e
2012).
Curiosamente as respostas recebidas
dos bancos sobre o assunto, nomeadamente o BCI e o BIM, incluem o nome do
engenheiro Frederico Francisco Martins, como assinante de todas as contas
bancárias a data de 31 de Agosto de 2013, “quando
nesta data já não fazia parte dos quadros das Águas da Região de Maputo”.
FALTA DE TRANSPARÊNCIA NOS
PROCESSOS DE LICITAÇÃO
Algumas aquisições efectuadas pela
empresa não foram suportadas por processos de licitação, nem existiam
evidências de terem sido definidas macro etapas, tais como procurement, finalidade
dos bens adquiridos, locais de instalação, etc.
Estas manobras visavam fintar
auditorias internas e externas, impossibilitadas de aferir em que medida a
contratação dos serviços prestados estariam enquadrados no âmbito do
plano definido pela empresa.
Por exemplo, documentos em nosso poder
ilustram o caso de serviços prestados pela empresa PRIMACIS, nomeadamente, a implementação do sistema de gestão de
frota Quatenus, avaliado em 2.100.000
meticais; a consultoria no âmbito da integração entre os sistemas Primavera e aquamatrix, no montante de 861.000
meticais, a implementação do sistema de gestão documental IportalDoc, avaliado em 3.159.000 meticais, bem como a consultoria
realizada tendo em vista a implementação do ERP Primavera, avaliada em 1.329.000
meticais.
O IMOVEL DA GEOMOC
Durante o período em análise, a Águas
da Região de Maputo efectuou o lançamento contabilístico de transferência do
imóvel adquirido em 2011, no montante de 49.472.428 meticais (valor que inclui
3.850.931 meticais referente ao adiantamento feito ao vendedor), para a conta
corrente do FIPAG com vista à amortização parcial dois créditos que mantém com
aquele accionista.
Contudo, apesar de solicitado, não foi
fornecido o contrato de compra e venda ou outro documento equivalente que
legitimasse a transacção, o que até hoje levanta dúvidas a respeito da
legalidade da operação.
GESTÃO DE STOCKS
A racionalização de custos de energia
e dos produtos químicos utilizados no tratamento de água, bem como a gestão de
processos de licitação, através de fornecedores críticos faziam parte de novas
iniciativas e objectivos estratégicos que a Águas de Maputo definiu para o
exercício de 2013.
Na sequência da busca de soluções para
as limitações impostas pelo acondicionamento do produto químico usado no
tratamento de água, particularmente o cloro gasoso, devido à falta de
vasilhames em quantidades suficientes, após a conclusão em 2011 das obras do
MWSP (Maputo Water Supply Project),
em 25 de Abril de 2013, a Águas de Maputo endereçou uma carta com referência 04/AdeM/DPDA/GT/AAPS/2013 ao accionista
FIPAG a propor três alternativas com vista a ultrapassar os constrangimentos
impostos pela demanda daquele produto na ETA (Estação de Tratamento de Agua),
designadamente:
1. Solução imediata: mediante a
aquisição de 12 botijas para permitir uma operação e gestão seguras;
2. Solução de médio prazo: através da
construção de um depósito de gás junto a ETA para dar maior conforto e
tranquilidade operacionais e mitigar o risco associado ao transporte e
manuseamento de botijas de gás.
3. Solução de longo prazo: mediante a
identificação de uma alternativa ao cloro gasoso.
A resposta do FIPAG à AdM, por carta
com referência 1143/M502/FIPAG/MWSP/202/MM41.5/13,
datada de 4 de Julho de 2013, transmite uma clara indicação para que “se proceda com a solicitação de pelo menos 3 (três) cotações para melhor
apreciação da primeira alternativa relativa à aquisição de botijas”.
No entanto, em Maio de 2013,
anteriormente a data da resposta supramencionada, a Direcção de Produção e
Distribuição e o Departamento Logístico iniciaram pesquisas no mercado
sul-africano com vista a encontrar produtos alternativos ao cloro gasoso para
se libertar da forte dependência até então imposta pelo único fornecedor deste
produto (Old World) a nível da
região, e em particular no país.
Neste sentido, foi identificada a
empresa Tazchem (Pty) Ltd, que na
mesma altura iniciou “ensaios de utilização do HTH
(produto químico usado no tratamento e potabilidade de água), em Pastilha, na
Estação de Tratamento de Água”, tendo os resultados se terem
revelado manifestamente satisfatórios quanto à redução de custos e
consumo de químicos, conforme descrito na informação proposta com
referência 011/DPDA/GT/2013,
datada de 10 de Junho de 2013, cujo despacho do Presidente do Conselho de Administração
indigita as duas direcções envolvidas na pesquisa a prepararem uma apresentação
e comunicação aos principais actores, nomeadamente FIPAG e CRA sobre o
resultado dos testes.
Apesar de não ter sido fornecida
qualquer evidência dessa comunicação aos actores, tivemos acesso à acta da
reunião número 10/13 de 23 de Julho, do Colectivo de Direcção Alargado que,
entre outras matérias abordadas, inclui a apresentação dos resultados dos
testes, não tendo sido levantada qualquer objecção.
Importa salientar que embora a
referida acta não ostente as assinaturas dos membros de Direcção que fizeram
parte do encontro, contactamos alguns dos participantes que nos confirmaram
sobre o conteúdo da mesma.
Para o nosso espanto, a 30 de Julho de
2013, através de informação proposta, com referência 012/DL/AG/2013, dirigida ao Conselho de Administração pelo
Departamento Logístico, foi autorizada a contratação, por ajuste directo, da Tazchem (Pty) Ltd como fornecedor
daquele produto, sendo a primeira aquisição avaliada em 648.826,72
randes, referente a 25.000 quilogramas de HTH em pastilha (633.450 randes) e
dois doseadores (15.376,72 randes).
Contudo, dados disponíveis indicam que
não existe no dossier evidência de terem sido observados os procedimentos
internos relativamente a introdução de novos produtos químicos para o
tratamento de água, que segundo a nota enviada pelo laboratório da ETA, tais
procedimentos incluem: testes a uma amostra de 500 ml/gr; ensaios laboratoriais
em períodos de baixa, média e alta turvação; certificação de não toxidade
emitido pelo Ministério da Saúde; resultados do ensaio do produto a escala
industrial por um período não superior a dois meses. Uma vez satisfeito o
segundo procedimento e, finalmente, a verificação de efeitos colaterais.
Não tendo sido tomados em consideração
os passos atrás referidos, a Administração da Área de Produção e Suporte, como
parte da sua avaliação de risco, em 3 de Outubro de 2013, através de
comunicação interna com referência 002/APS/2013,
solicitou ao Gabinete de Planificação e Controlo, uma auditoria interna de
qualidade sobre o processo cujos resultados “determinaram
a suspensão da utilização do produto para melhor análise”.
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