GRAÇA MACHEL DISSIPA EQUÍVOCOS SOBRE A HISTÓRIA:
A FRELIMO é que libertou o país
FELISBERTO ARNAÇA, NOTÍCIAS – 21.09.2015
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GRAÇA Machel, combatente da luta de libertação nacional, considera não constituir nenhum problema o facto de algumas pessoas pretenderem reescrever a história da epopeia libertadora sem a terem vivido.

A combatente defende a necessidade de, neste exercício, ter-se em conta que factos históricos o são em todo o momento e que a Frelimo é obreira dessa mesma proeza.

Entretanto, sobre a tensão política que se vive no país na actualidade afirma que a raiz de toda a situação é o Acordo Geral de Paz, que na sua opinião foi mal negociado, justamente porque não se fez vincar a centralidade do Estado e a necessidade do respeito pelas instituições.

Oradora do tema “O Legado da História da Luta de Libertação na Construção da Nação” no Seminário Científico sobre os Desafios da Pesquisa da História da Libertação Nacional na Actualidade, que sexta-feira terminou na capital do país, Graça Machel, que é presidente da Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC), disse haver, de há algum tempo a esta parte, questionamentos sobre a história da epopeia libertadora, que pretendem pôr em causa a sua autenticidade.

Para a combatente e 1.ª ministra da Educação, a informação recolhida sobre a história da luta de libertação nacional deve ser verificada e cruzadas as suas fontes, num processo em que se deve estar ciente de que factos históricos são factos históricos.

Ressalvou, todavia, que aqueles que questionam o papel da luta de libertação nacional para a independência de Moçambique “querem nos roubar o conteúdo real da luta pela liberdade”.

Segundo afirmou, há pessoas que por miopia contestam a proclamação da independência nacional a 25 de Junho de 1975 no Estádio da Machava. Graça Machel concorda que uma pessoa pode pensar diferente, mas até ao ponto de questionar a proclamação da independência nacional, nomeadamente no que diz respeito aos seus fundamentos e importância, é simplesmente inaceitável.

No exercício infeliz de questionamento à proclamação da independência nacional, disse Graça Machel, há, por exemplo, jovens que se recusam a ir à Praça dos Heróis nas celebrações do 25 de Junho, alegadamente porque se trata dum evento intrínseco à Frelimo e não de Estado.

“Não tenhamos medo de exaltar a luta de libertação nacional”, afirmou, acrescentando que a identidade dos moçambicanos como um povo nasceu duma luta diária difícil.

Graça Machel defendeu ser fundamental que valores tais como povo, pátria, identidade nacional continuem a povoar o universo das presentes e futuras gerações, para que a legitimidade do Estado não seja negociada, a integridade territorial não seja questionada e não se permita que o país seja balcanizado.

“O legado da luta de libertação nacional é afirmar que nós temos um percurso próprio, que se fez e que se transformou não só numa prática mas também numa filosofia de vida e que agora deve compenetrar as outras filosofias de vida. A dignidade de sermos moçambicanos não nos foi oferecida mas sim conquistada”, disse.

Acrescentou que a independência nacional é o acto sublime de libertação de qualquer povo. Trata-se dum valor que deve ser continuamente incutido nos jovens e exaltado por todo o cidadão moçambicano, independentemente da sua filiação político-partidária.

“É preciso afirmar que a libertação de Moçambique começou, evoluiu e é um facto histórico. Não foi a Coremo que libertou Moçambique. Não digo que a Coremo não existiu”, disse, sublinhando que a liberdade não foi oferecida aos moçambicanos, mas sim conquistada e hoje ela ainda tem de ser conquistada.

Apelou aos pesquisadores da história da luta de libertação nacional para que encarem como um imperativo fazer o registo da história sobre a gesta libertadora, cruzando as fontes de informação para que as emoções não confundam os factos históricos.

“Não há problema nenhum em acreditar de maneira diferente. Agora, história é história. É preciso recolher, é preciso verificar os factos, é preciso registar. Factos históricos são factos históricos, gostes ou não gostes”, disse.

Graça Machel, que no início do tema disse não ser uma investigadora e que não iria obrigatoriamente falar de factos históricos mas sim de alguns acontecimentos que podem ser verificados, confirmados e por isso mesmo considerados factos históricos, referiu-se a alguns trechos do discurso proferido pelo primeiro Presidente da Frelimo e arquitecto da unidade nacional, Eduardo Chivambo Mondlane, supostamente no dia 23 de Junho de 1962, num encontro que antecedeu o anúncio formal do I Congresso, que serviu formalmente para lançar a fundação da Frente de Libertação de Moçambique.

Num desses trechos Eduardo Mondlane afirmava que “em poucos anos temos assistido à formação de partidos políticos, tanto no exterior como no interior de Moçambique” e que “há apenas três meses que esses partidos se fundiram num só movimento, o único até à data, a Frente de Libertação de Moçambique… estamos aqui para forjar a união… estamos aqui para estabelecermos as bases de acção que nos conduzirão à libertação do nosso país”.

Com base nos trechos Graça Machel conclui que o I Congresso não criou a Frente de Libertação de Moçambique. Segundo afirmou, o desejo de formar a Frente já tinha sido manifestado três meses antes do seu lançamento formal e a nível internacional a 25 de Junho de 1962.

Porém, apelou para que essa sua suposição devia ser objecto de investigação por parte dos pesquisadores da história da Frelimo.

“Devemos fazer um grande esforço de registar os factos e deixar para a posteridade o que é que a Frelimo construiu como fundamento da nação”, disse.

Para a combatente da luta de libertação nacional, é um facto histórico que em Junho de 1962 reuniram-se moçambicanos de várias etnias, falando línguas diversas, moçambicanos de várias regiões, norte, centro e sul, moçambicanos de vários extractos sociais, de várias raças, homens e mulheres, jovens e adultos, professando várias religiões e entre eles havia camponeses, operários dos caminhos-de-ferro, profissionais de diversas áreas, uns muito letrados, como o próprio Eduardo Mondlane, outros semi-letrados e alguns até analfabetos.

Esses moçambicanos que se reuniram pela primeira vez na Tanzania iam do território moçambicano e alguns já residiam naquele país vizinho como refugiados. Exprimiam voluntariamente que queriam fazer parte do movimento para combater o colonialismo português e libertar Moçambique política, económica, social e culturalmente.

“Havia, e tinha de haver, elementos unificadores dessas pessoas, com essa grande diversidade. Tinham uma motivação política, o desejo de liberdade. Alguns tinham apenas uma motivação social, saíram de Moçambique porque iam procurar oportunidades para estudar e elevar o seu estatuto social. Outros tinham uma motivação económica, tinham o desejo de melhorar as suas condições de vida material”, disse.

Acrescentou que a motivação de cada um transformou-se em fundamentos, que se podem chamar filosóficos, económicos e sociais, que representavam uma aspiração muito mais elevada e que se converteu num denominador comum de todos: a liberdade, a autodeterminação, que era a possibilidade de os moçambicanos poderem decidir o que queriam ser, como é que queriam ser governados, como é que queriam construir o seu país e como é que queriam que os seus filhos e gerações vindouras vivessem e conduzissem os destinos de Moçambique.

Para isso, indicou Graça Machel, eles tinham que desenvolver um sentido de partilha, de pertença, tinham que estabelecer vínculos de solidariedade e em função dessa solidariedade forjarem uma identidade comum. Ou seja, esses moçambicanos deixavam de ser moçambicanos da zona sul, centro e norte para serem moçambicanos que conhecendo apenas a sua zona de origem ou onde tinham crescido estavam decididos a partilhar experiências de sofrimento que lhes permitiram ampliar o motivo de pertencerem a um espaço emocional comum.

Nesse espaço emocional comum esses moçambicanos sentiram que não era somente a história de sofrimento que os unia, mas também o desejo de construção de um futuro que os vinculava e desse vínculo viam-se uns aos outros forjando uma identidade comum.

Campo de Nachingweia: a forja

Graça Machel contou que a primeira coisa que se fazia nas aulas políticas em Nachingweia era cada um contar a história de sofrimento. Cada um tinha que falar das razões por que se juntava à Frelimo, o que o colonialismo havia feito para cada um e por que desejava libertar-se.

“Para mim aquelas histórias de sofrimento foram um elemento fundamental para eu me ver moçambicana. Eu entrei num pelotão que era composto por jovens do Niassa e Cabo Delgado. A grande maioria não falava Português. Para nós ouvirmos a história de cada um deles era preciso tradução para o Português. Eu falei em Português para eles poderem entender. Disseram coisas que eu nunca tinha ouvido. Embora seja filha de camponeses, conheço o campo, porque eu vivi lá, mas as histórias do Niassa e de vários distritos de Cabo Delgado cimentaram um melhor conhecimento em mim sobre o que era Moçambique e o que era opressão colonial”, disse.

As aulas políticas, indicou, eram o momento que estimulava nos guerrilheiros a vontade comum de afirmar que o sistema colonial não tinha o direito de governar as suas vidas, a vida dos moçambicanos.

Graça Machel vinha da universidade. Durante o dia tinha instrutoras militares, algumas das quais semi-analfabetas, e à noite dava-lhes aulas.

“Eu vinha da universidade. Tinha instrutoras semi-analfabetas de dia e à noite dava-lhes aulas. Isso me ensinou a mim a saber qual era o meu lugar. Vinha da universidade mas no campo (de treinos) elas eram minhas chefes. A Palmira (já falecida, foi secretária-geral da OMM), principalmente, tinha 17 anos, eu tinha 26 para fazer 27 anos. Ela era mais nova que eu, mas de dia dava-me instrução e à noite eu dava-lhes aulas e exigia um trabalho sério, sem desculpas nenhumas. Isso ensinou-me a conhecer muito bem o meu lugar”, relatou.

Apropriação colectiva de valores

Afirmou que em Nachingweia os moçambicanos traziam mundos diferentes, mas foi lá onde se fundiram as diversidades das danças e sua transformação em danças comuns. Graça Machel disse que a Frelimo compreendeu, desde logo, a necessidade de transformar as várias danças em património colectivo, visando forjar os fundamentos emocionais da nação.

“Apropriámo-nos das canções, das danças, até dos rituais”, disse, indicando, por exemplo, que na formatura era preciso cantar canções revolucionárias, erguer a bandeira da Frelimo e a uma dada altura foi criado o hino da Frente.

‘Tudo isso são rituais. A formatura era um ritual obrigatório e comum, quer estivesse em Tunduru, Mtwara, Nachingweia, Tete, Manica, Sofala, Zambézia”, afirmou, acrescentando que mesmo no Instituto Moçambicano havia uma hierarquia e uma estrutura que nunca era de confundir.

“Na Frelimo também nós alargámos os nossos horizontes. Quando entrámos lá pertencíamos a uma tribo mas ganhámos a consciência de que éramos moçambicanos. Também aprendemos uma coisa importante: a luta dos angolanos, dos sul-africanos e dos zimbabweanos estava indissociavelmente ligada à nossa luta, não havia luta dos moçambicanos sem a luta desses camaradas”, disse, revelando que a Tanzania, que igualmente acolheu os movimentos de libertação daqueles países, organizou até um campo, o campo de Kongwa, onde todos treinavam juntos.

Isso permitiu a compreensão de que Moçambique estava integrado num contexto mais amplo. Em Kongwa, segundo Graça Machel, foram rompidas as fronteiras da Conferência de Berlim e recuperadas as fronteiras da região austral de África anteriores às daquela conferência, de partilha de África.

Disse que a Frelimo criou os seus próprios conceitos filosóficos, tais como estudar, produzir e combater, fazer da escola uma base para o povo tomar o poder, valores como luta contra o tribalismo, o regionalismo e o racismo, emancipação da mulher é uma necessidade da revolução, condição da sua libertação, entre outros.

O conceito de que a escola era uma base para o povo tomar o poder pretendia dar primazia à importância do conhecimento em todo o processo libertador. É daí que foram enviados, nos primeiros anos da independência nacional, milhares de crianças para Cuba para estudar. Eram crianças filhos de operários e camponeses, com prioridade máxima para os filhos destes.

Outro fundamento filosófico do Estado era que quem devia frequentar a universidade deviam ser os filhos dos operários e camponeses.

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