Elísio Macamo, Notícias, Sexta, 04 Setembro 2015
EU gosto do
Mia Couto. Gosto do que escreve. Gosto da sua imaginação. Gosto da sua
criatividade. Gosto da forma surpreendente que ele tem de dizer verdades incómodas.
E não sou o
único, o que revela a sua grandeza. Dou-lhe os meus parabéns pelo doutoramento
honoris causa. Acho que esse é o doutoramento mais difícil de conseguir. O
outro, o normal, é assunto de cumprimento de dever. É, para usar a insinuação
de Mia Couto durante a sua oração de sapiência, algo que se obtém sem mesmo
conhecimento… mas doutor honoris causa significa o reconhecimento por aquilo
que nós fazemos pelo nosso talento, pela perseverança, pela dedicação.
Qualquer
pessoa pode ser doutor de verdade, mas nem todos podemos ser doutor honoris
causa, pois enquanto o primeiro trabalha para esse fim dentro de parâmetros
claros, o outro nem aí está, e mesmo assim pode ser reconhecido.
Li a sua
aula de sapiência com muito interesse, como aliás deve ser quando se trata de
Mia Couto.
É uma aula
que contém ideias brilhantes, chamadas de atenção pertinentes e ainda por cima,
eivadas do humor, fruto duma capacidade de observação do quotidiano que só ele
tem entre nós (e, aposto, no mundo inteiro).
O conjunto
da aula, contudo, incomodou-me mais do que me estimulou.
As verdades
pareceram-me simples demais, os pressupostos na base dessas verdades
pareceram-me fruto dum tipo bastante superficial e nocivo de análise que é
característico da nossa sociedade, a base normativa chegou a mim como algo
rebuscado, amnésico em relação ao passado que está na origem de alguns dos
males por ele apontados, uma base normativa que nega aquilo que a própria aula
queria transmitir, nomeadamente a ideia de que Moçambique é um lugar que pode
ser para todos, um lugar, portanto, onde cabem todas as sensibilidades,
incluindo as daqueles que acreditam em valores desprezados por outros.
Explico-me.
A aula
chegou a mim como uma crítica velada a Guebuza. O que me incomoda nisso não é a
crítica em si que isso é assunto do próprio Guebuza e, já agora, da
Procuradoria-Geral da República… Incomoda-me, isso sim, a repetição de lugares-comuns,
a ausência de esforço em entender as condições que produziram a cultura
política e pública tão características do segundo mandato de Guebuza, e o
recurso a uma análise do tipo censura para entender os desafios enfrentados
pelo país.
É opinião
assente em Moçambique que passamos por uma experiência de governo caracterizada
pela arrogância do poder, ganância pessoal e o uso de vocabulário sugestivo,
mas oco. Tudo o que foi feito nos últimos dez anos reduz-se à impressão com que
ficamos dos últimos cinco anos do mandato de Guebuza e, sobretudo, da reacção
do Governo e do próprio chefe às críticas, algumas vezes justificadas, outras
vezes simplesmente injustas e incoerentes.
Algumas das
reacções de Guebuza a jornalistas foram simplesmente mal reportadas pelos
jornalistas, arrancadas do seu contexto e colocadas ao serviço da reprodução
duma imagem fixa que esses jornalistas tinham dele.
Espanta-me
que pessoas que têm percurso na Frelimo tenham pouca sensibilidade para a forma
como aquela organização funciona.
Quando
Guebuza tomou as rédeas da Frelimo fez um grande investimento na revitalização
do partido – muita gente esquece que durante o consulado de Chissano muitos se
tinham afastado, sobretudo aqueles que durante o consulado de Samora Machel
tinham o poder e, muito possivelmente, se opuseram ao fim negociado do conflito
com a Renamo.
Uma das
coisas mais bonitas que aconteceram quando Guebuza subiu ao poder – para quem é
simpatizante da Frelimo – foi ver o regresso (à lucidez), mas também ao
trabalho do partido dessas pessoas. Guebuza investiu muito nisso, apesar de
tudo.
Estou a
pensar no caso bem específico de Marcelino dos Santos. Quem não se lembra da
desgraçada imagem que ele fazia de si próprio por aí, confirmado alguns dos
defeitos que lhe tinham sido apontados por Janet Mondlane na sua
auto-biografia? Quem não se revoltou com isso sabendo o que tinha acontecido a
pessoas que se haviam comportado daquela maneira durante os anos gloriosos da
Frelimo?
Para
percebermos porque algumas dessas pessoas se tornaram tão hostis a Guebuza não
é suficiente convocar termos simplistas como corrupção, ambição, ganância e
arrogância. É preciso também perceber que agendas entraram em choque lá na
Frelimo e que tipo de agenda reunia consensos.
Não creio
que tenha sido a agenda do enriquecimento fácil que vingou no interior da
Frelimo. Foi uma agenda pragmática distante do populismo revolucionário que
tanto mal fez ao nosso país.
O facto de o
país atravessar um momento económico e político que facilita muito o
enriquecimento fácil, o oportunismo e a ganância precisa de ser analisado. Não
é um indivíduo que é responsável por isso. Isso é simplista demais.
Por muito
que Nyusi jogue à bola com crianças, vá à Igreja rezar por mais encontros com
Dhlakama, etc., só a sua atitude não vai mudar muita coisa enquanto não
analisarmos as condições estruturais que determinam muitos destes
comportamentos problemáticos. Ademais, estamos a ver no julgamento que decorre
agora que o discurso de “traição dos valores revolucionários” é muito forte e é
minha impressão que precisamos de olhar para esse discurso também para
percebermos porque a nossa representação dos últimos dez anos é bastante
simplista.
Eu acho caricato
que o Mia Couto fale do luxo em que viveu enquanto compunha o hino nacional no
meio de toda a miséria daquela altura, mas não encontre palavras para julgar
isso e o tipo de política que produziu essas contradições, mas tenha muito a
criticar aos que hoje se enriquecem. Por que é que a vida aparentemente de luxo
dos dirigentes de então não deve merecer reprovação moral? Não percebo.
O Mia Couto
falou, e muito bem, da erosão dos valores morais. Isto é muito importante,
desde o momento que essa erosão não seja vista como algo de hoje (ou pior
ainda, dos últimos dez anos). E aqui gostaria de abordar uma questão que me
incomoda bastante no discurso moralista da actualidade no nosso país.
Muitos
daqueles que criticam o estado actual das coisas não têm a rectidão de falar
donde isso vem, falar da responsabilidade que a folia revolucionária deve
assumir e, acima de tudo, distanciarem-se elas próprias de forma clara e
inequívoca dos excessos desse tempo (e, se for o caso, do seu próprio papel
nisso; no mínimo deviam ter a coragem de nos dizer o que fizeram para evitar
esses excessos e, se nada fizeram, dizerem porque não fizeram, e pedirem
desculpas por isso).
O que hoje
chamamos de Guebuzismo é talvez um dos extremos (o outro foi o Samorismo que
poucos dos apóstolos morais criticam – o seu quinquagésimo aniversário foi
festa nacional, isso não era lambe-botismo?) do poder da Frelimo, um poder que
sempre se constituiu na definição de quem pertence, e quem não pertence.
A
incapacidade revelada por Guebuza de lidar com um poder absoluto é típica da
Frelimo e foi bem patente nos primeiros anos da nossa independência até à morte
de Samora Machel. Reduzir essa incapacidade a Guebuza parece-me bastante
simplista, ainda que com isso seja fácil marcar pontos numa esfera pública que
confunde a crítica com a auto-vitimização.
Os aplausos
que vejo por aí ao interessante discurso de Mia Couto não são apenas o reflexo
de algo merecido. São também uma manifestação da miséria da nossa crítica, uma
ilustração daquilo que o próprio Mia Couto critica, nomeadamente aplaudir quem
diz mal dos outros.
Numa outra
ocasião vou querer falar de aforismos como “a maior desgraça de um país pobre é
que, em vez de produzir riqueza, vai produzindo ricos”, ou, já agora, “o outro
problema das nações pobres é que, em vez de produzirem conhecimento, produzem
doutores…”. São excelentes aforismos, mas numa esfera pública onde eles não são
debatidos para se saber o que o autor queria dizer servem facilmente para que
cada um de nós forme a sua ideia de “ricos” ou de “doutores” que devem ser abominados.
Seria um outro texto.
Mas é
evidente que a produção dum rico em si não precisa de entrar em conflito com a
riqueza, muito menos com a distribuição justa da riqueza. Mais desgraçado é o
país pobre que nem um rico consegue produzir. Quando ele é capaz de produzir um
rico devemos ficar contentes, pois isso revela potencial.
A discussão,
contudo, deve ser em torno do que impede outros de se tornarem ricos e o que
acontece com essa riqueza. Mas, lá está. Somos herdeiros dum discurso marxista
mal digerido que nos leva imediatamente a abominarmos qualquer coisa que cheire
a capitalismo, mesmo quando nas nossas práticas quotidianas não fazemos outra
coisa senão emularmos, em silêncio, esse modelo de vida.
Parabéns ao
Mia pelo reconhecimento. Não quero estragar uma festa merecida. Mas acho que se
a mensagem tivesse incidido no guarda que cumpriu o seu dever, e menos numa
imagem caricaturada do seu chefe, teria sido mais instrutiva, pois esse é que
sempre foi o nosso problema, ou melhor, o problema da Frelimo, a saber o
lambe-botismo que toda a cultura política autoritária fomenta.
E não foi
Guebuza que inventou isso.
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