É PRECISO ELIMINAR AS PAREDES DE
ÓDIO ENTRE MOÇAMBICANOS
Selma Inocência, STV, Quinta, 27 de Outubro de 2016
Graça
Machel, antiga Ministra da Educação (1975-1989) e activista social, partilha
vivências com Samora Machel, primeiro Presidente de Moçambique, e o estágio das
investigações sobre o acidente aéreo que o matou, em 1986.
Em
entrevista ao jornal O País, Graça Machel comenta assuntos da actualidade em
Moçambique e na região da SADC.
Passam 30
anos da morte do Presidente Samora Machel. Hoje, a sociedade reflecte mais
sobre o seu legado. Durante a sua convivência com Samora, equacionava que iria
alcançar esta dimensão humana?
Não, não
sabia. Eu apaixonei-me por um homem e vi nele qualidades humanas, isto me
cativou. Honestamente, tive um dilema muito grande para me casar com Samora,
porque me apercebi de que ele iria, eventualmente, tornar-se Chefe de Estado e
eu não me sentia capaz de assumir a responsabilidade de estar com alguém que
tivesse tão altas responsabilidades. Nós tivemos discussões muito sérias a
respeito disso.
Samora,
quando chegou aqui já em junho de
1975, mais do que nunca, sentia-se muito só. Estava habituado a viver nos
campos com muitos colegas, camaradas; no interior, estava sempre rodeado de
pessoas. Quando ele entra naquele palácio, está ele, o Samito (Samora Machel
Jr.) e os trabalhadores. Ele começou a sentir, mais do que nunca, a necessidade
de ter uma companheira, então, nós discutimos isso e chegámos à conclusão de
que o nosso amor era forte, viesse o que viesse, havíamos de aguentar juntos. foi assim que acabamos nos casando. Mas
não foi uma decisão fácil, diga-se a verdade, da minha parte não foi fácil.
Depois que
Samora voltou da guerra, teve que o ajudar a cuidar de todos os seus oito
filhos, dos quais seis teve com outras mulheres. Como foi esse desafio?
Samora tinha
um forte sentido de família, como os próprios filhos já declararam. Eu devo
dizer, para a minha própria consciência, que fiz o melhor para educar os filhos
de Samora. Ele queria trazer os filhos para casa, mas houve ali um período de
hesitação de dois camaradas muito próximos dele, que vieram falar comigo e
disseram: tu tens consciência de onde te estas a meter? Sugeriram-me organizar
uma casa onde os filhos iam ficar e eles visitariam o pai e as respectivas
mães quando quisessem. Eu disse não, seria cruel para as crianças. As crianças
ou ficam com as mães e visitam o pai ou ficam com o pai e visitam as mães. Não
se tira as crianças de um dos pais para os meter numa casa e serem cuidadas por
trabalhadores.
Eu acho que,
nos nossos primeiros anos, éramos uma família unida. Tínhamos preocupação uns
com os outros, etc. À medida que os filhos crescem, fazem as suas opções. Essa
unidade já não pode dizer, hoje, que ela exista. Mas a minha tranquilidade sabe
qual é? Qualquer um deles, já são grandes, uns com quase 60 anos, até o
meu próprio filho tem 37 anos, vai fazer 38, tem o direito de fazer as opções
que quiser e governar a sua vida como melhor entender. Mas, do meu ponto de
vista, até ao dia em que Samora morreu, até muitos anos depois, nós continuámos
uma família unida.
Um jornal na
Rússia escreveu, no dia 19 de Outubro de 2016, num artigo intitulado “Há 30
anos um acidente de avião mata Presidente moçambicano Samora Machel”, passo a
citar: “Eu tenho certeza que não foi um acidente”. Esta citação é de uma das
teses, e não surpreende que os russos insistam nisto. Em Dezembro de 2012, a
pedido da mamã Graça, o Presidente Nelson Mandela abre uma investigação por uma
equipa especial denominada “The Scorpions”. Qual foi o resultado desse
trabalho?
É preciso
dizer que este é um assassinato político. E, como é um assassinato político,
há-de haver muitas interpretações. Há-de haver combinadas interpretações que
levaram a este assassinato. Eu duvido que tenha sido apenas um único grupo.
Há-de haver grupos de interesse que tenham estado envolvidos neste assassinato.
Está a
afastar a hipótese de erro humano?
Eu não estou
a afastar. Eu estou a dizer que qualquer que tenha sido o erro humano, não foi
determinante para o avião desviar-se. Aliás, a questão do VOR já está mais do que provada. As pessoas têm que dizer e
compreender, havia o VOR, e há
pessoas na África do Sul que já fizeram declarações. estiveram naquele lugar dois dias antes, acampados, e tinham
a missão, inclusive, de caso o avião caísse e Samora não morresse, iriam
liquidá-lo. Está documentado, se as pessoas quiserem, procurem esta informação.
O jornalista
que andou à volta desta investigação ainda está vivo e eu espero que a pessoa
que fez estas declarações também ainda esteja viva. Eu não estou a especular em
relação à existência do VOR e do
acampamento das forças sul-africanas, dois dias antes da tragédia de Mbuzine.
Há uma
senhora velhinha de 70 anos talvez, nessa altura, que também confirmou. está filmado, diz terem visto movimento
de soldados ali, mas não sabiam o que estava a acontecer, só depois, quando um
dos sobreviventes vai parar na casa desta senhora. é por isso que ela é entrevistada, ela diz é verdade, nós
vimos. Portanto, há factos que são revelados por pessoas que participaram.
Agora, o detalhe de como se fez, quem está envolvido, é essas coisas que são
inconclusivas.
A
continuação da investigação, que Madiba (Mandela) solicitou, vem de revelações
anteriores. Eu fui falar com o Presidente Thabo Mbeki e disse-lhe: eu quero
pedir que a comissão da verdade abra espaço para que, se houver
alguém que queira descarregar a sua consciência, possa apresentar-se. Mbeki
disse-me: não deves ir fazer como pessoa, deixe-nos nós como ANC submetermos o
assassinato de Samora como parte da nossa submissão do ANC à Comissão de Verdade.
E é assim que aconteceu.
O presidente
Mbeki apresentou, em nome do ANC, a submissão à Comissão da Verdade, para
iniciar a investigação. Portanto, a minha solicitação às autoridades
sul-africanas não começou com o Presidente Mandela, começou com Oliver Tambo,
naquele período em que estava como “chairperson”
do ANC, antes mesmo de 1994. Eu falei com Oliver Tambo, falei com Mbeki, mais
tarde com o Presidente Mandela. Agora, aproveito para dizer, há duas, três
semanas, fui falar com o Presidente Jacob Zuma. Eu disse: és o único Presidente
em funções que viveu e conheceu Samora Machel, eu não acredito que tu vais
querer sair da Presidência da África do Sul sem encerrar este caso. Eu
sei que o Presidente Robert Mugabe também está vivo, mas por causa da idade
muito avançada, eu pedi há anos, mas agora não iria ter com ele. Portanto, ele
está em posição de investigar isso, porque é Presidente da África do Sul. Ele
viveu connosco aqui, ele conhece Samora muito bem. Então, eu fui falar com ele
para lhe recordar, ainda tem dois ou três anos antes de terminar o mandato.
Estas são as
acções de pressão desenvolvidas a nível da África do Sul. E a nível de
Moçambique, o que é que foi feito?
Seria
deselegante fazer alguns comentários. Dizer o que os meus dirigentes fizeram,
depois de dizer o que eu disse, prefiro não fazer isso. Em primeira instância,
é o governo de Moçambique que tem
que tomar iniciativa de investigar a morte de Samora, África do Sul apenas
colabora. Ele é Presidente de Moçambique e são as instituições do Estado de
Moçambique que têm que fazer isso. Que nos digam o que é que têm estado a
fazer.
Não estou a
dizer que não estejam a fazer nada, estou a dizer que tornem públicas as coisas
que eles fizeram. Estou a dizer as coisas que fiz pessoalmente, não só por
causa do meu marido, mas por causa de todas as 35 almas que ficaram ali. Eu sei
o que foi feito até ao momento em que se decidiu suspender as investigações,
sob liderança do presidente Armado
Emílio Guebuza, no início.
Decidiu-se
suspender até que África do Sul ficasse independente, porque a primeira
investigação foi feita enquanto o ANC não estava no poder. Portanto, cabe a nós
saber o que foi feito depois de o ANC estar no poder; quais são as iniciativas
que os Governos de lá e de cá tomaram. Eu não estou a dizer que nunca se fez
algo, apenas não tenho conhecimento.
Agora,
comentando sobre os russos, não é a primeira vez que abrem a possibilidade de
se revisitar a questão de Mbuzine. O primeiro a dizer isso abertamente foi o Presidente
Boris Yeltsin. Ele fez esse pronunciamento há alguns anos, à volta do mês de outubro. Nós estávamos exactamente
neste tipo de celebração da vida de Samora. Eu não consigo lembrar-me quando,
os jornalistas e investigadores podem verificar isso. Ele veio a público e
disse: nós precisamos de reabrir este inquérito. Agora, o que se disse no
passado dia 19 de Outubro é a segunda vez que eu tenho conhecimento. Eu acho
que é mais do que oportuno que o governo
de Moçambique agarre esta oportunidade.
Os russos
têm interesse, também, porque estão entre as pessoas suspeitas de que teriam
sido parte de uma conspiração. É do interesse deles provar que sim ou não. Eu
acho que nós devíamos aproveitar isso o mais depressa possível, até porque o Presidente
Zuma disse estar preparado para fazer isso. Então, eu acho que a bola agora
está do nosso lado, liderarmos o processo.
É PRECISO DESTRUIR AS PAREDES DE
ÓDIO ENTRE OS MOÇAMBICANOS
O nosso país vive um clima de
instabilidade militar. Dezenas de
pessoas, entre militares e civis, já morreram desde que eclodiu este conflito.
Há algumas semanas, fez uma declaração pública em que dizia que o país tem que
inventar o impensável para o alcance da paz. Qual é o sentido destas palavras?
Quero dizer
que para o alcance de uma paz verdadeira, uma paz duradoira, ainda não
esgotámos todos os meios de que necessitamos. As negociações que estão em curso
hão-de conseguir, e oxalá que seja breve, que cessem as armas, mas isso não vai
trazer a paz eterna.
Há um
processo muito mais amplo, muito mais profundo e longo, que se tem de iniciar
para se construir as pontes entre pessoas que, durante décadas, habituaram-se a
olhar umas para as outras, não só como adversários. Não se vêem como irmãos,
não se vêem pertencendo ao mesmo espaço, aquele ideal comum de uma pátria de
todos, onde todos nós temos os mesmos direitos e os exercemos,
independentemente das nossas diferenças, quer sejam políticas ou de outra
ordem. Esse processo ainda não começou. É isso que eu quero dizer com o
impensável.
Ultimamente,
infelizmente, com o recrudescimento do conflito, os ódios em certos segmentos
estão a crescer. É preciso eliminar as paredes de ódio entre os moçambicanos,
ficarmos com a aceitação da diferença como uma coisa normal em qualquer
sociedade. Não devemos continuar a pensar que há diferenças intransponíveis
entre nós moçambicanos.
Este
conflito, a maneira como ele está a ser desencadeado, principalmente nos últimos
tempos, quando se mata o Secretário do Bairro, o Chefe do Bairro, etc., a coisa
já não está a nível político em cima, já está a entrar nas aldeias onde as
pessoas vivem e isso é extremamente perigoso. É preciso acabar o mais depressa
com isto e começar a construir as pontes, as fundações, para nos olharmos uns
para os outros com o mesmo sentido de pertença e destino comum. Quando
divergirmos, havemos de falar, mas não nos vamos matar uns aos outros.
Banalizou-se
a vida nesta sociedade de tal maneira que se pensa que matar é uma solução. tem que se chegar ao ponto em que se
diz nunca um moçambicano vai levantar a arma para matar outro moçambicano,
simplesmente porque eles divergem em opiniões e na forma de gerir a sociedade;
temos que chegar ao ponto em que se diz nunca. É o impensável de que estou a
falar.
O presidente Chissano chegou a declarar à
imprensa, este ano, que este processo de diálogo não começou em 1992, que o Presidente
Samora já tinha tentado alguma aproximação. Lembra-se
em que momento o presidente
Samora fez isso?
Eu fiz,
também, este pronunciamento numa intervenção, no Instituto Superior de Relações
Internacionais (ISRI). Foi em Outubro de 1984, depois da assinatura do Acordo
de N’komati, em Março. O Governo da Frelimo estava quase a assinar um acordo
com a Renamo, em Pretória.
O que
falhou?
Eu penso que
esta pergunta devia ser feita às pessoas que estiveram directamente envolvidas,
eu não quero fazer esse pronunciamento público agora. Não foi resistência do
nosso lado, houve uma intervenção estranha à última da hora, quando já estavam
prontos a assinar. isto levou a
Renamo a recuar.
Quando o presidente Samora estava preparado para
assinar o acordo, a Renamo já tinha aceitado alguns princípios fundamentais de
se integrar na constitucionalidade do tempo, já se tinha conseguido alguns
avanços.
Samora foi
um dos pioneiros na luta contra a corrupção no país. expulsou muita gente, gerou muitas inimizades, mas colocou o
país nos patamares dos menos corruptos do mundo. Hoje, Moçambique é mal visto
nas instituições financeiras internacionais e nos parceiros de cooperação por
causa da corrupção e, principalmente, por causa das dívidas escondidas
recentemente descobertas. Porque é que recuámos até este estágio?
Os primeiros
a sentirem-se desconfortáveis e indignados com os níveis de corrupção não são
as instituições internacionais, são os moçambicanos, milhões de nós. Porque é o
cidadão comum que paga o preço, é o pai que não consegue matricular o filho sem
pagar, é aquele que vai procurar o tratamento e tem que pôr alguma coisa na mão
de alguém para ter o tratamento a que tem direito. É aquele que, quando
circula, tem que pagar o polícia. Estou a falar das coisas quotidianas, mas as
malhas da corrupção já entraram para atrasar o processo de produção de comida
básica.
Estamos com
41, quase 42 anos de independência, e não conseguimos produzir arroz, cebola,
tomate, fruta, leite para uma criança ter um copo. Não produzimos ovos para uma
criança ter um ovo por dia. Faz as estatísticas e diz-me que país é o nosso que
é incapaz de produzir simplesmente com as nossas condições, de modo a que
tenhamos o básico, comida diversificada, para as crianças terem leite e pão.
Tira-se pão da boca das crianças quando se pratica a corrupção nos níveis que
nós temos.
Agora, o que
é que falhou, eu acho que esta pergunta deve ser feita aos nossos governantes.
Esta sociedade sabia viver sem corrupção ou os níveis de corrupção haviam de
ser negligenciáveis, é por isso que este país já foi considerado um dos menos
corruptos. Não sou eu que estou a dizer que esta prática desapareceu com o presidente Samora, é a história do país
que está a dizer que, a partir de um certo período, nós tolerámos esta maneira
de fazer as coisas e aceitámos essa forma de viver como se fosse normal. Esta questão das dívidas chegou a
proporções extremas. Sai a dívida da equação, os níveis de corrupção existem
nos nossos serviços públicos.
Em que
momento houve essa descontinuidade?
Eu sou
polémica a dizer estas coisas. já
se disse claramente que não se sabe o que eu estou a querer dizer com
descontinuidade, por isso, prefiro ficar caladinha, porque é deselegante eu ter
que entrar numa espécie de diálogo com os meus dirigentes, eu não posso fazer
isso. Mas está registado na história que houve um período em que a sociedade
moçambicana sabia viver respeitando as normas, respeitando os serviços, as
pessoas que trabalhavam na função
pública respeitavam o público,
isso já aconteceu.
Por exemplo,
os discursos de Samora também falam disso, falam do burocratismo. ele encontrou o burocratismo, mas
combateu-o energicamente, os actos de corrupção. Uma das coisas que terão ficado como mancha da governação da
Samora foi ele ter tomado medidas muito drásticas, que as pessoas criticaram.
Era a maneira que ele tinha encontrado de expressar a sua indignação, mas
também de deixar uma mensagem clara a todos de que isso não vai ser tolerado. em algumas das coisas, pode dizer-se
que ele foi longe demais, eu não quero protegê-lo nisso, mas era a maneira dele
de fazer as coisas.
Houve pessoas
que foram fuziladas aqui, eram os “candongueiros”, eram as primeiras formas de
manifestações de se quebrar as fronteiras das especulações, etc. na altura, estávamos em guerra e essa
ficou. as pessoas podem perguntar
se era preciso mesmo fuzilar as pessoas, eu também pergunto. portanto, eu não estou aqui a dizer que
ele sempre fez tudo bem, eu estou a querer dizer que ele estava bastante
indignado e queria mandar uma mensagem clara de que há certas coisas que não
devem ser toleradas na nossa sociedade. Essas decisões não foram tomadas a
nível de base. tu não tens um
tribunal a julgar e a fuzilar a nível de base, foram actos de Estado bem
claros, à luz do dia. Agora, se era preciso chegar a esses níveis, estudem,
digam os cientistas sociais.
Em Dezembro
de 2015, num painel do grande fórum Mozefo, promovido pelo grupo Soico,
com o tema: “O futuro é agora, humanizando o crescimento”, defendeu que
“é necessário que cada um dos agentes de desenvolvimento dê respostas sobre
como resolver questões mais prementes da sociedade, incluindo sindicatos, que
muitas vezes estão ausentes neste debate”. Considera que o desenvolvimento
económico não se reflecte na vida das pessoas ou da comunidade?
Não sou eu que considero. Está mais do que claro que os índices de crescimento
económico que nós tivemos durante uma década eram índices de crescimento, mas
não se traduziam em índices de desenvolvimento. Quando eu digo agentes de
desenvolvimento, é que nós já tivemos um tempo em que planificar o
desenvolvimento de um país implicava envolvimento daqueles que vão ser os
principais executores. e não são
apenas o Governo e os empresários, são os trabalhadores, camponeses,
professores, enfermeiros. Quer dizer, se quisermos falar de produção de
riqueza, é preciso maior envolvimento daqueles que são os produtores da riqueza
para as famílias moçambicanas, onde a maioria é de camponeses organizados, são
os trabalhadores das empresas.
Para além dos sindicatos se sentarem na comissão tripartida para negociar o
salário mínimo, acho que é preciso muito mais envolvimento do Governo, dos
empresários e dos trabalhadores para discutir assuntos de produção, como
melhorar e aumentar a produção em condições em que se respeitem os direitos dos
trabalhadores. esse debate, na
minha perspectiva, já não está a acontecer.
Quando digo para resolver problemas básicos, eu volto à comida, é preciso
trabalhar com as associações dos camponeses, é preciso trabalhar com os
produtores, mas isto significa planificar com eles e definir qual é o papel do
Estado e o deles como organização, onde vai a produção e como é que podemos
conservar. Todos os nossos problemas estão ditos 50 vezes, mas até hoje não
conseguimos construir um sistema de celeiros para que os camponeses possam ter
condições de preservar aquilo que não podem vender no momento, para que a
produção não se estrague.
O que está a
falhar? Políticas? Implementação?
Está a
falhar a implementação. É preciso trabalhar com as pessoas e sujar as mãos com
elas, provar como é que se deve fazer. Eu acho que os nossos dirigentes grandes
estão muito distanciados dos camponeses, trabalhadores e, às vezes, mesmo dos
serviços públicos. Os agentes de desenvolvimento não são apenas os produtores
de comida, estou a falar daquilo a que nós chamamos função pública. e não é por acaso que deram esse nome,
é serviço ao público, não é dificultar a vida do cidadão.
As pessoas
não estão preocupadas com aquela mãe, com aquela aluna, aquele doente. Temos
que nos perguntar quantos assuntos eu resolvi por dia e não quanto eu recebi,
para podermos avaliar como estamos a funcionar. É preciso chegarmos a um ponto
em que dizemos que, em algum distrito, a produção faz-se bem, conserva-se
aquilo que for necessário conservar, as pessoas têm comida 365 dias e chegamos
a um ponto em que uma família camponesa não tenha uma refeição por dia.
nós comemos
três vezes ao dia, por que a família do camponês tem que comer uma vez ao dia?
Temos que chegar ao ponto em que as pessoas tenham comida diversificada três
vezes ao dia, como tu e eu achamos que temos direito e todos os moçambicanos
têm esse direito. É esta coisa que eu sinto urgência em transformar, porque são
43% das crianças dos zero aos cinco anos. Quando se diz malnutrição crónica,
fala-se de crianças que não crescem ao tamanho normal e o cérebro fica
atrofiado. Portanto, temos quase metade das crianças dos zero aos cinco anos
com a mentalidade atrofiada e sem crescimento normal.
Isto
compromete o futuro das próximas gerações?
Nestas
condições, nem daqui a 50 anos vamos deixar de ser pobres, porque não vamos ter
a força principal, que é a energia intelectual para nós usarmos o conhecimento
científico e tecnológico de modo a competirmos no mundo do século XXI. As
nossas crianças não vão conseguir e essa é a minha maior dor. eu não tenho problemas se, aos meus 71
anos, não conseguir isso, mas por que aceitaria que o meu neto de quatro anos
não tivesse as suas capacidades intelectuais totalmente desenvolvidas.
Quando eu
digo o meu neto, não estou a falar do neto que saiu da minha barriga, estou a
falar desses 43% de crianças que são meus netos. Em províncias como Cabo
Delegado e outras, são mais de 50%. É isso que me revolta. Custa-me aceitar e
eu não vou aceitar. Então, esse meu activismo é por causa dessas injustiças
sociais, nós não podemos fazer isso aos nossos filhos, aos nossos netos. É por
isso que tentamos fazer consciencialização das pessoas das próprias
instituições e adoptam-se políticas.
Faltam pessoas preocupadas com o bem-estar do povo
Graça Machel
esteve, no passado dia 28 de Outubro de 2016, em Maputo, a proferir uma palestra
aos estudantes, pesquisadores e a pessoas de vários extractos sociais. Graça
Machel falou do passado sem se descurar do presente, e disse haver défice, no
país, de pessoas que tenham o povo como prioridade.
Com o tema
“Educação na governação de Samora Machel”, a antiga Ministra da Educação falou
dos desafios que este sector teve no passado, mas disse também que há lacunas
que persistem até hoje. Para a activista social, Moçambique precisa formar e
ter pessoas preocupadas com o povo.
“O homem
novo que nós queremos hoje é esse que está preocupado com o bem-estar do povo,
proteger o povo e servir os seus interesses. E são essas as coisas que eu penso
que faltam”, disse Graça Machel, para quem o país deve, por outro lado,
trabalhar muito para que os moçambicanos tenham direitos iguais de
desenvolvimento.
“Construir
uma sociedade de justiça social significa saber que temos que ter comida para
todos, água, escolas e todas as coisas básicas”, realçou.
A palestra
proferida por Graça Machel surge no âmbito da Conferência Internacional de
Oficina de História de Moçambique, evento organizado por pesquisadores nacionais
e internacionais, com o apoio do Arquivo Histórico de Moçambique (AHM).
Moçambique precisa de eliminar “paredes de ódio”
A
activista social moçambicana Graça Machel defendeu que Moçambique precisa de
eliminar as "paredes de ódio" no seio da sociedade, alertando que a
intolerância política começa a entrar nas aldeias e isso é “extremamente
perigoso”.
“Este conflito, a maneira como está a
ser desencadeado, principalmente nos últimos tempos, quando se mata um
secretário do bairro, a coisa já não está a nível político, já está a entrar
nas aldeia e isso é extremamente perigoso”, disse Graça Machel, em entrevista
ao diário O País, no passado dia 27
de Outubro de 2016.
Destacando a necessidade de o país
começar a construir pontes para reconciliação, como forma de acabar com a crise
política e militar que opõe o Governo moçambicano e a Resistência Nacional
Moçambicana (Renamo), principal partido de oposição, Graça Machel disse que os
moçambicanos precisam de aprender a conviver na diferença.
"Quando
divergimos, havemos de falar, mas não nos vamos matar uns aos outros”, declarou
a primeira ministra da Educação de Moçambique após a independência,
acrescentando que para superar a crise política será necessário fazer o
impossível.
“Temos de olhar uns aos outros com o
mesmo sentido de pertença e destino comuns”, declarou a viúva do primeiro
Presidente moçambicano, Samora Machel, reiterando a necessidade de parar
imediatamente com as confrontações militares, que já deixaram um número
desconhecido de mortos.
Para Graça Machel, Moçambique precisa
de reinventar os seus próprios modelos sociais, respeitando a dinâmica e as
exigências de novos tempos, dentro de clima de tolerância e transparência para
garantir o futuro dos moçambicanos.
Ao analisar os actuais desafios
económicos do país, a activista social disse que a questão das dívidas
escondidas, que totalizam 1.4 mil milhões de dólares (1.2 mil milhões de
euros), contraídas entre 2013 e 2014, atingiu “proporções alarmantes”,
alertando para o facto de as lideranças políticas moçambicanas estarem cada vez
mais longe do povo.
“A partir de um certo momento, nós
toleramos esta maneira de fazer as coisas [corrupção] e aceitámos essa forma de
viver como se fosse normal”, lamentou a activista moçambicana, acrescentando
que, nestas condições, nem daqui a 50 anos o país vai sair da pobreza.
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