A FRELIMO QUE EU ABRACEI NÃO É A MESMA DE HOJE
(Entrevista a Mia Couto)
Estêvão Azarias Chavisso, Maputo, 24 de Abril de
2016
PLATAFORMA MACAU - Como observa a situação política em Moçambique, tendo em conta a recente crise político-militar e as eleições de Outubro de 2014?
MIA COUTO - Eu acho que nós estamos numa situação
que é preciso arrumar a casa dentro das próprias forças partidárias. É preciso
que tanto a Frelimo, a Renamo e o Movimento Democrático de Moçambique (MDM) se
acertem internamente para melhor percebermos que propostas trazem aos
moçambicanos. Porque no fundo, a grande armadilha, é que estamos a discutir
nomes e cores políticas, mas não estamos a discutir uma filosofia, uma proposta
concreta para vermos o que é diferente nas ideias de cada um destes partidos.
Isso ficou claro no último Congresso da
Frelimo. Percebeu-se que existem propostas diferentes, mas estas linhas não são
só pessoas, são ideias. Em vez de discutirmos ideias, propostas do futuro,
estamos a discutir nomes, e isso não garante um futuro que nos habilita a
sermos felizes. Agora, eu compreendo, isso são fases históricas. Por muito que
eu pense que devia ser de outra maneira, a história é assim mesmo.
Há momentos que um homem só resolve os
problemas de um país, como foi o caso de Samora Machel. A história pedia que nesse
momento houvesse um homem que colocasse ordem.
É verdade que agora não podemos pedir
uma coisa que não é possível, mas temos de estar conscientes que temos de
chegar lá, num momento em que nós estaremos a debater realmente ideias
políticas.
A campanha eleitoral, por exemplo, é
uma coisa tão pobre. É uma distribuição de camisetas, música nos carros e
desfile de viaturas. Mas quanto debate realmente houve sobre o país? Muito
pouco.
P.M. – No início dos anos 70, o Mia
Couto juntou-se à Frelimo, com o ideal da libertação e da construção de uma
nação moçambicana. Anos depois, afastou-se do partido e, consequentemente, do
cenário político moçambicano. Houve valores perdidos que o levaram a afastar-se
do partido?
M.C. – Sem dúvida, também mudei. Eu
percebi que a visão política, seja de um partido ou do outro, é sempre
utilitária e imediata. É uma visão ligada ao poder. Eu não tenho nenhuma vocação
para o poder, não o quero.
Mesmo na vida quotidiana, não quero
que a minha existência se faça por imposição de um poder qualquer. Então, não
foi só uma ruptura política mas foi também uma ruptura existencial.
Eu percebi que aquele caminho não é
meu, em outros termos, aquela não era minha praia. A Frelimo que eu abracei por
uma causa na altura, e fui muito feliz nesse momento, não é a mesma de hoje.
Não a reconheço. Esta é uma Frelimo dos empresários e dos ricos.
Não que eu tenha problemas com os
empresários, mas uma coisa é confundir isso com a aposta política. Eu acho que
tem de haver coerência dentro do partido. A Frelimo não pode ser ontem
comunista, depois capitalista, e agora neoliberal.
P.M. – São quase 40 anos de
independência e 20 anos depois das primeiras eleições democráticas em
Moçambique. Como observa a democracia no país actualmente?
M.C. – Eu acho que cresceu naquilo que pôde
crescer. O país não é o mesmo e aí é preciso tirar o chapéu para o governo.
Criou-se um ambiente em que, apesar de
ter alguns casos de apetência ao autoritarismo, as pessoas podem falar e podem
pensar – o que não é comum nos países africanos.
Agora, infelizmente existe essa ideia
de que a democracia é uma coisa restrita ao momento de voto, mas a democracia é
mais do que isso. É preciso que ela seja exercida, por exemplo, na capacidade
que eu tenho de dizer coisas sobre o meu espaço e as grandes opções do meu país
– o acordo ortográfico por exemplo.
P.M. – Actualmente, na esfera mundial,
o debate sobre o potencial de Moçambique está muito ligado à questão dos
recursos minerais, recentemente descobertos. Haverá outros trunfos que Moçambique
pode apresentar além do potencial energético?
M.C. – Sem dúvida. Esse país poderia oferecer
outras oportunidades, caso da agricultura, do turismo, e mais. Mas isto implica
possuirmos um pensamento estratégico que nós não temos.
Nós trabalhamos sobre o imediato.
Queremos repartir e negociar vantagens para grupos e para elites, não temos uma
visão do futuro. É inconcebível, por exemplo, a agressão da polícia aos
turistas em Moçambique.
A forma com que os visitantes são
recebidos pelos serviços alfandegários é inaceitável. É evidente que este
visitante não mais voltará. Não conseguimos mudar isso, não temos força e nem
poder para travar isto. Por exemplo, muita gente viria a Moçambique para ver a
fauna bravia, mas temos de parar a caça furtiva porque em breve não teremos
mais parques.
P.M. – Quais são as principais ameaças
à coesão social em Moçambique?
M.C. – São as diferenças regionais, por
exemplo, entre o norte, centro e sul. As diferenças por si só não são um
problema, mas podem ser facilmente manipuladas por forças que fazem esse
aproveitamento.
A questão religiosa também pode ser
manipulável. Eu não sei, por exemplo, até que ponto Moçambique vai ficar fora
deste contexto em que uma certa radicalização do islamismo nos pode atingir
também.
Nós costumamos dizer que aqui é
diferente, mas também se dizia a mesma coisa na Somália e no Quénia. Sabemos
até que esse discurso de separação já está a ser debatido por alguns partidos
políticos, por exemplo, a Renamo (Resistência Nacional Moçambicana, maior partido
da oposição) trouxe isso.
Portanto, há realmente ameaças que
colocam em causa à coesão social.
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