É A NOSSA VEZ DE COMER:
Uma história queniana…que alerta Moçambique!
Tomás Mário Vieira, In: SAVANA, 29 de Janeiro de 2016

Que se desenganem aqueles que confundem alternância governativa com alternativa política!

É a nossa vez de comer - uma expressão esclarecedora sobre o sentido de alternância governativa democrática em África - é o título de um livro que relata, de forma vigorosa e cáustica, a história de um escândalo de corrupção de alto nível, alguma vez denunciado no Quénia, consequência da captura do Estado por elites predadoras, ancoradas em forças políticas de base tribalista ou regionalista.

Ao longo de anos sem fim, Ministros de áreas-chave, de governos de partidos rivais, saqueiam o Estado em várias centenas de milhões de dólares, simulando aquisições de equipamento tecnologicamente sofisticado… para a modernização das Forças de Defesa e Segurança do país! Uma saga pungente e corrosiva, cuja arquitectura faz lembrar estórias moçambicanas e constitui um sério alerta ao próprio percurso político de Moçambique.

O livro de Michaela Wrong, uma jornalista internacional com larga experiencia de trabalho em África, onde cobriu vários eventos e crises políticas para a BBC, a Reuters e a Financial Times, conta a odisseia de um Alto Funcionário do Governo queniano que, confrontado entre a lealdade tribal/partidária e a sua consciência ética, opta por esta última, pisando graves riscos pessoais e para a sua família, incluindo o risco da própria vida!

Através de uma pesquisa rigorosa, Michaela Wrong demonstra como se urdem os esquemas de corrupção de alto nível dentro do Governo, em conluio com o mundo dos negócios, questionando também o papel, quantas vezes cínico, dos doadores ocidentais, na luta contra a corrupção em África.

O texto que se segue é uma tentativa de resumo de um denso livro de 354 páginas, publicado em 2009, mas cada dia mais actual!
 
A chegada do “Messias”

Quando Mwai Kibaki ganha as eleições presidenciais de 2002 no Quénia, ele vinha de duas derrotas em 1992 e 2000, a favor de Arap Moi, no poder desde 1978.

Enquanto líder da oposição no Parlamento, Kibaki tinha desenvolvido um forte discurso anti-corrupção, atacando o seu antigo líder, agora rival: afinal Kibaki era uma velha raposa da política queniana, com passagem por diversos cargos ministeriais, desde a era de Jomo Kenyatta, o fundador do estado queniano, até a era do próprio Arap Moi, de quem foi, aliás, Vice-Presidente, ao longo de 10 anos: de 1978 a 1988! Até que em 1991, Kibaki rompe definitivamente com Arap Moi e o seu partido, o KANU (Kenya National Union).

No seu discurso de tomada de posse, Kibaki vai reiterar, em termos resolutos, “tolerância zero a corrupção”, a pior e a mais arreigada das endemias de governação do país, incubada e desenvolvida desde a independência do país, em 1964, sob a couraça político-ideológica do tribalismo e do regionalismo.

Com efeito, quando da independência do Quénia em 1964, sob a liderança de Kenyatta, os Kikuios, a tribo maioritária do país, tornaram-se o grupo dominante, tendo-se apoderado das terras férteis deixadas pelos colonos britânicos e dominando a administração estatal.

NB: Onde vem escrito “Quénia”, leia-se “Moçambique”; onde vem escrito “tribos/tribalismo” leia-se “partidos/partidarismo”.

Com a ascensão de Arap Moi ao poder, emergiu a era dos Kallenjin, que passariam a dirigir a máquina do Estado e a ascender, também, a grandes negócios da mais forte economia da África Oriental. Porém, a chegada ao poder de Kibaki (da tribo Kikuio) parecia prenunciar o fim deste ciclo: quando rompeu com Moi, o “elitista jogador de golfe” - como alguma imprensa o qualificava - logrou criar e liderar uma forte aliança com outras forças da oposição, através da NARC (National Rainbow Coalition), para derrubar o governo do seu antigo líder.

A NARC incluía partidos conotados com diferentes tribos, nomeadamente com a mais directa tribo rival, a dos Luo, agrupada em torno do Orange Democratic Party, liderado por Raila Odinga. Como se não bastasse, os parceiros ocidentais do Quénia haviam já bloqueado toda a ajuda a Arap Moi, após sucessivos escândalos de corrupção massiva de alto nível!

Este quadro parecia proporcionar a Kibaki excelentes condições sociopolíticas e psicológicas para introduzir reformas políticas estruturais no Quénia.

Sendo um homem do “sistema”, Kibaki seria, pois, a figura certa para liderar uma revolução pacífica na sociedade queniana, libertando-a das políticas tribalistas que engendravam, desde há 50 anos, uma distribuição incestuosa e potencialmente explosiva da renda nacional.

Afinal, não tinham sido forças políticas fora do “sistema” a liderar os processos de reformas políticas profundas que transformaram a África do Sul e a União Soviética (sobretudo neste último caso), nos finais dos anos 1980, mas sim dirigentes máximos do próprio “sistema”, como foram os casos de Frederich de Klerk e Michael Gorbatchov!

Por isso, dizem as crónicas da época, a ascensão ao poder de Kibaki era celebrada, mais pelo fim do regime cleptocrata de Moi, do que pela chegada ao poder do novo Presidente! Ou seja: as razões da expectativa ultrapassavam a figura do novo Presidente!

No acto da sua investidura, e discursando mesmo ao lado do seu antecessor, Kibaki vai afirmar: “A era do “vale tudo” (any thing goes) acabou!” E sentencia: “A corrupção vai agora deixar de ser o modo de vida no Quénia!”

Na linha desta retórica, nos primeiros meses do consulado de Kibaki, os jornais vão sair todos os dias com estórias pitorescas, assinalando a “nova era”: condutores de matatus (“chapa cem”), vão procurar agentes corruptos da Polícia nas esquadras, exigindo que lhes devolvam dinheiro que lhes vinham extorquindo na estrada, ao longo de anos, naquilo que e comummente designado por Kitu Kidoko (pequena corrupção).
 
Por seu lado, funcionários públicos vão escrever em jornais, revelando nomes de seus superiores hierárquicos, a quem pagavam mensalmente Kitu Kidoko, como “taxas de segurança”, para manterem os seus empregos seguros; nas salas de espera e em gabinetes de Gestores Públicos são pendurados grandes quadros, proclamando, em letras garrafais: “zona livre de corrupção” ou “aqui não se aceitam subornos”; etc.

O próprio Presidente Kibaki vai criticar publicamente grandes empresas que haviam comprado largos espaços nos jornais, para o felicitarem, dizendo que estavam a desperdiçar dinheiro! (A mensagem verdadeira era: “escusem-se de me “escovar”!).

As largas fotografias de Arap Moi, algumas de corpo inteiro, ubiquamente pregadas em tudo quanto fosse sítio, vão ser retiradas, mas o novo Chefe de Estado proíbe que sejam substituídas pela sua própria imagem; as sirenes da comitiva presidencial, cortejada por filas de motorizadas de alta cilindragem, que paralisavam o já insuportável tráfego de Nairobi, desaparecem: um novo Quénia parece anunciar-se!

Um Czar anti-corrupção no Governo

Para provar que falava a sério, a respeito da luta contra a corrupção, Kibaki vai criar, junto do seu Gabinete, um posto com um propósito claro: o de Secretário Permanente para a Governação e Ética, uma entidade estatal dotada de poderes extraordinários e plenipotenciários, que incluem acesso directo e privilegiado ao Chefe de Estado, a qualquer hora.

A escolha do titular de tão poderosa pasta vai reconfirmar, aos olhos da opinião pública, designadamente da Sociedade Civil e dos doadores, a determinação do Presidente: John Githongo, renomado jornalista investigativo e antigo Director Executivo da Transparência Internacional (TPI) no Quénia, é o todo-poderoso Czar Anti-Corrupção que Kibaki vai designar!

Githongo, temperado nos meandros de uma comunicação social inquisitiva e de uma sociedade civil fortemente interventiva, chega ao Governo com a reputação de intrépido combatente anti-corrupção: ao longo de anos, tinha sido um carrasco do Governo de Arap Moi, investigando e denunciando furiosamente o regime corruptocrático do sucessor de Jomo Kenyatta.
 
Encorajado por este clima, Githongo vai encarar a sua missão com determinação, penetrando rapidamente redes de uma poderosa classe de predadores do Estado, que floresceu coberta por uma densa manta do mais primário tribalismo e nepotismo. Um número de funcionários de escalão médio do anterior regime vai ser arrastado a barra do tribunal e obrigado a devolver fundos e património do Estado de que se haviam locupletado inescrupulosamente.

Com as notícias da sua “obra” fazendo eco junto da população, Githongo vai começar a receber informações não solicitadas, porém particularmente inquietantes: Altos Funcionários do seu próprio Governo são indiciados de…continuar os esquemas do anterior regime!

Pouco a pouco, Githongo vai-se dando conta de estar a desfiar a pele de uma jibóia que parece prolongar-se sem fim, pela mata adentro. Contudo, também cedo ele vai se aperceber de que, se a sua “perseguição” judiciária aos cleptocratas do regime de Arap Moi poderia ocorrer com algum resultado, já o mesmo não seria de tolerar, quando tratando-se de seus colegas, ministros do mesmo Governo: se Arap Moi tinha “comido” com a sua tribo, os Kalenjin, era agora a vez de Kibaki e a sua tribo, os Kikuio, de também “comerem”!

Com efeito, assim que os Serviços de Segurança do Estado dão-se conta que o “Czar anti-corrupção” quer ir “longe demais” e “depressa demais”, vão tratar de travar-lhe o ímpeto: aos seus pedidos de informação, passam a responder com relatórios ocos.

Em face desta realidade, Githongo vai lançar mão dos seus recursos investigativos, adquiridos na Transparência Internacional: decide estruturar uma rede privada de informantes de primeira água, que lhe vão fazer “leaking de informação valiosa, a partir de Ministérios estratégicos e do Banco Central: tinha orçamento suficiente para pagar generosamente por informação de qualidade!

O esquema

Mês-após-mês, assim que penetra naquilo que se vai relevar ser um túnel profundo e escuro, Githongo vai acabar por dar “de caras” com um devastador esquema de delapidação de fundos públicos, através do qual Ministros do seu Governo roubam ao Estado, impiedosamente, milhões de dólares, mensalmente!

Na base de um esquema com terminais no exterior, Ministros de áreas-chave, nomeadamente das Finanças, da Justiça, do Interior, dos Transportes e Comunicações, da Defesa e da Segurança e entidades subordinadas, haviam criado uma empresa fantasma, denominada Anglo Leasing, com um falso endereço em Londres. A esta empresa, eles iam “encomendando”, sucessivamente, equipamento sofisticado, de tecnologia de ponta, supostamente destinado a modernização das Forças de Defesa e Segurança!
 
A longa lista de equipamento constante de falsos contratos inclui:

  • Uma rede digital multi-canais de comunicação para os Serviços Penitenciários;

  • Novos helicópteros e um sistema seguro de comunicações para a Polícia;

  • Uma fragata de tecnologia de ponta para a Marinha de Guerra;

  • Uma rede de dados e serviço de Internet via satélite para os Correios;

  • Um sistema sofisticado de vigilância militar denominado Project Nexus”;

  • Um sistema de radar de aviso prévio para os Serviços de Meteorologia, etc., etc.

Para a “aquisição” destes equipamentos, o gangue lançava concursos internacionais, para os quais concorriam, de facto, várias empresas que, apesar da sua reputação internacional nas respectivas áreas de especialidade, sempre perdiam a favor da …Anglo Leasing!

Ao longo de anos, com esta empresa, eles e seus antecessores, do Governo de Arap Moi, haviam simulado um total de 18 contratos milionários!

A opção por “equipamento de Segurança Nacional” é óbvia: a luz das leis de Segurança do Estado, sempre há-de ser, em qualquer parte do mundo, entendível que tais operações sejam efectuadas pelo Governo em ambiente sigiloso, sendo o acesso aos respectivos ficheiros extremamente restrito, mesmo para a acção fiscalizadora do Parlamento…

Velhas cobras debaixo de novas alcatifas

Dos 18 contratos através dos quais o gangue urdiu esta saga, 12 haviam sido assinados na era de Arap Moi; os restantes seis… já no primeiro ano da era de Kibaki! Ou seja: quando Kibaki assume o poder, as velhas cobras que ele tanto atacava, enquanto líder da oposição, enfiaram-se no seu Gabinete e esconderam-se debaixo das novas alcatifas! A rede, tentacular, tem conexões junto de sectores da comunidade queniana de origem asiática, conhecedora dos meandros da corrupção internacional!

Rapidamente, os Ministros vão dar-se conta que o Czar Anti-corrupção está “cavando” fundo demais e acabara, inevitavelmente, por descobrir o secreto esquema: encarando-o como “irmão” do mesmo sangue Kikuio, chamam-no e lhe dizem: “na verdade, a Anglo Leasing… somos nós”. A “justificação” apoia-se, exactamente, em argumentos tribalistas: “o Governo anterior privilegiou os Kalenjin, a tribo de Arap Moi; agora somos nos, os Kikuios: é a nossa vez de comer…”

O grupo - a que Githongo vai mais tarde designar por “Máfia do Monte Quénia” - faz esta revelação na convicção de que ele, sendo Kikuio, vai condescender e, assim, desistir de mais investigações: não só se enganavam, como também corriam um alto risco: afinal Githongo estava gravando, discretamente, esta confissão e iria gravar muitas outras conversas sigilosas, com os ministros do seu Governo, nos tempos que se iam seguir!

O General Cobarde

Ao longo do período em que finge ignorar as operações da Máfia do Monte Quénia, Githongo vai tendo acesso a mais evidências sobre o esquema e, já na posse de provas suficientes, escreve uma carta ao Governador do Banco Central, pedindo-lhe para parar imediatamente com quaisquer novos pagamentos a Anglo Leasing, e solicitando detalhes sobre todo o dinheiro transferido para a firma até a data.

Compilados vários documentos e cruzadas várias fontes, os auditores descobrem que o gangue acoitado no Governo tinha saqueado, através daquele esquema, nada menos que… 751 milhões de dólares, ao longo de anos!

Ora, uma tal quantia, de tão elevada, já não causa qualquer revolta no cidadão comum, pois ela já não cabe, nem faz qualquer sentido, na sua cabeça!

Pouco depois, John Githongo, tomando pequeno-almoço com Kibaki - o que era habitual, tal era a sua proximidade com o Presidente – conclui ter chegado o momento apropriado para dar o passo decisivo, e sugere ao Chefe de Estado: “Vossa Excelência tem agora todas as evidências necessárias para agir; confiar no nosso sistema de justiça… não vai adiantar nada: sugiro-lhe, pelo contrário, uma acção política enérgica!”

Githongo fica na maior expectativa, pois está convicto de que, chegado a este ponto, o seu desempenho satisfaz, certamente, as expectativas do Presidente!

E o que diz o Presidente?

Para o total espanto de Githongo, o Presidente vai reagir como reagiria um rato surpreendido com uma fatia de queijo na boca, e diz, simplesmente: Take it easy…Isto e: “tenha calma”.

O Presidente diz isto e levanta-se da mesa, deixando Githongo estupefacto e confuso: afinal o que quer o Presidente?!

Nos dias que se seguem o Secretário Permanente para a Governação e Ética vai começar a notar que os seus colegas do Governo, Ministros, olham-no de forma estranha, de soslaio, e lançam-lhe piadas despropositadas, conduta não muito comum aos hábitos algo sisudos, pretensamente britânicos, da classe política queniana.

Dias depois, o Presidente, surpreendendo Githongo, convoca a imprensa, dizendo que pretende fazer uma comunicação à Nação. John Githongo não tem dúvidas: o Presidente vai, certamente, anunciar uma remodelação governamental, demitindo os ministros corruptos e nomeando um novo Governo. Não poderia estar mais equivocado!

A Máfia do Monte Quénia vai, pelo contrário, sair reforçada do discurso televisivo do Presidente e ele… transferido para um obscuro gabinete, junto do Ministério da Justiça! Exactamente o Ministério que, com o das Finanças, liderava as operações da Anglo Leasing, que ele tinha documentado e denunciado ao Presidente!

No dia seguinte, quando Githongo arrumava os papéis do seu gabinete, para se mudar, um assistente do Presidente vai ter com ele e diz-lhe o seguinte: na verdade, o Presidente não o tinha demitido do seu cargo: foi o Ministro da Justiça que, sub-repticiamente, enfiou um parágrafo no discurso do Presidente, com o nome de Githongo, anunciando aquela transferência!

E o assistente do Presidente enfatiza: “Aposto que o Presidente nem se deu conta do que leu…até agora!”

Quando, incrédulo, John Githongo vai ter com o Presidente. O que vai ocorrer é uma cena absolutamente surrealista: o Presidente mostra-se sinceramente espantado; nega a pés juntos que o tenha demitido, e diz-lhe para continuar a trabalhar…”normalmente”!

O que será que se estaria a passar? Teria o “velho” sido enganado, e de forma tão vil e primária, por um dos seus ministros-chave, sem se dar conta de nada? Estará o Presidente em pleno gozo das suas faculdades mentais? Ou serão ainda sequelas do ataque cardíaco que sofreu, na sequência do grave acidente de viação de que foi vítima, durante a campanha eleitoral? Ou será o velho hábito dos líderes fracos - quais generais cobardes! - De querem agradar a toda a gente, ficando paralisados, na hora de tomar grandes decisões? Ou então a velha táctica de pronunciar discursos de mudança, porém sistematicamente desmentidos pela prática, para criar o discurso desculpabilizante, bem africano, segundo o qual “o Mais Velho quer honestamente a mudança, mas está rodeado de crápulas que o sabotam”?

Todas estas perguntas cruzavam-se na cabeça de Githongo, porém sem reposta. Mas um facto apresentava-se-lhe evidente: depois de tudo, já não lhe restava ambiente de trabalho sustentável!

Do exílio voluntário ao rebentar do escândalo

Desiludido com o sistema, mas sobretudo, com o Presidente, Githongo abandona o Governo e parte para Oxford, aonde ensaia pretender continuar com os estudos superiores, numa instituição de estudos estratégicos internacionais.

Contudo, em vez disso, e com a ajuda da sua antiga rede de informantes, de Nairobi, ele vai entregar-se a uma tarefa monumental: transcreve as suas várias horas de gravações secretas, em que os Ministros assumem a Anglo Leasing e revelam o funcionamento do esquema; consubstancia com os seus sistemáticos diários pessoais; junta documentos oficiais do Banco Central e de Ministérios-chave e outras entidades oficiais envolvidos e prepara um detalhado dossier sobre a saga.

Entretanto, e sem surpresa, de Nairobi é lançada uma forte campanha para o desacreditar, com artigos de encomenda na imprensa: vão chamá-lo de vil traidor, que acabou se desmascarando, entregando-se aos seus patrões britânicos, dos Serviços Secretos do MI6!

Um antipatriota sem escrúpulos nem classe, que traiu a confiança dos colegas, e vive agora uma vida de Lord, graças a negociatas sobre segredos de estado!

Os ataques vão atingir a sua família: o pai, dono de uma das maiores empresas de auditoria do Quénia, que quase detinha o monopólio das auditorias das entidades públicas do país há várias décadas, perde todos os contratos e vai praticamente a falência!

Mas Githongo ainda não perdeu a esperança; ainda acredita no Presidente; e acredita que Kibaki, na posse de informação mais consubstanciada sobre a Máfia do Monte Quénia, vai certamente reagir: cria todas as condições necessárias para enviar, com segurança, o seu dossier ao Presidente, e certifica-se de que este o vai, efectivamente ler!

O Presidente, após ler o dossier, ao longo de toda uma tarde, fecha-o e deixa-o na sua secretária. Até ser arquivo pelos assistentes, na manhã seguinte.

E… silêncio!

Githongo vai ainda fazer inúmeras tentativas, para ser ouvido pessoalmente por diferentes instituições do Estado, incluindo o Parlamento: em vão!

Chegado a este ponto, ele toma uma decisão de recurso: decide revelar o dossier através da comunicação social queniana!

Assim, em 2006 os ficheiros da Máfia do Monte Quénia começam a ser revelados pelo Jornal The Nation: peça por peça, dia-após-dia, sendo reproduzidos - inevitavelmente! - Por toda a imprensa queniana e vasta imprensa internacional! As reacções não vão tardar: a oposição pede a dissolução imediata do Governo; a Sociedade Civil e as Igrejas pedem a “cabeça” de vários ministros!

Traição ao povo e crimes contra a humanidade

A reacção de membros do Governo vai variar entre exigências de mais provas e ameaças de processar Githongo pelo crime de traição, previsto na lei! Até que...dias depois rebenta a grande “bomba”! - a BBC vai transmitir as conversas secretamente gravadas, em que ministros revelam, de viva voz, que são eles a… Anglo Leasing!

Vai ser, então, o desmoronamento do castelo! Um por um, o Vice-Presidente da República, os ministros das Finanças, da Justiça e do Interior, vão apresentar a sua demissão, bem como um grupo de assessores directos do Presidente, cuja imagem de “messias” tinha-se esboroado, como uma bolha de sabão…

O vasto consenso nacional para a reconstrução do país pós-Arap Moi cai por terra, representada pela NARC… sim, desmorona!

Com a sua imagem totalmente destruída, o que oferece campo político favorável a oposição, nas eleições presidenciais aprazadas para o ano seguinte, Kibaki dá uma “meia volta” e cria um novo partido, o Partido da Unidade Nacional (PNU), sob o qual vai concorrer para um segundo mandato. Mas com o escândalo, tinha traído profundamente a confiança da população e tinha oferecido espaço para a oposição, nomeadamente a Raila Odinga, que formara o ODM, e poderia dizer: “agora é a nossa vez de comer!”

Vários candidatos vão apresentar-se ao escrutínio, um dos mais renhidos da história do Quénia, com um recorde de participação do eleitorado.

Depois de atrasos sucessivos na divulgação dos resultados, Kibaki é declarado vencedor, com uma margem mínima, sobre Raila Odinga. Este vai contestar imediatamente os resultados, recebendo apoio indirecto dos observadores internacionais, que questionam a validade dos resultados finais.

Na sequência, protestos violentos vão eclodir e propagarem-se rapidamente por todo o país, então dividido sobretudo entre dois grupos étnicos: os Kikuio (tribo/partido de Kibaki) e os Luo/ Kalenjin (tribo/partido que apoia Odinga).

Ao longo de dois meses seguidos, de Dezembro de 2007 a Fevereiro de 2008, mais de 1.000 pessoas vão ser barbaramente mortas; e mais de 600.000 desalojadas, numa carnificina a aproximar-se ao genocídio ocorrido há 13 anos antes, no vizinho Ruanda!

Em apenas dois meses de violência, cujo grau de destruição claramente reflectia o resultado de tensões sociais acumuladas, Quénia vai perder todos os cinco anos de reconstrução nacional pós-Arap Moi!

No final, duas importantes figuras políticas do país vão ser acusadas da prática de crimes contra a humanidade e chamadas a responder perante o Tribunal Internacional de Haia (TPI).

Com efeito, em Janeiro de 2012, o TPI vai confirmar processos-crime contra três importantes membros do Governo de Coligação Nacional, constituído para gerar a crise política pós-eleições. São eles Uhuru Muigai Kenyatta, então Vice-Primeiro-Ministro e Ministro das Finanças; William Samoei Ruto, Ministro da Educação Superior, Ciência e Tecnologia; Francis Kirimi Muthaura, Secretario da Função Pública e do Gabinete do Presidente, e ainda um jornalista: Joshua Arap Sang, ao serviço de uma estação de rádio local.

Estes líderes políticos vão ser acusados de instigação activa ao ódio tribal/partidário - o manto político-ideológico que tem coberto e fertilizado a corrupção endémica, a exclusão política, económica e sociais crónicas, naquele país da África Oriental.

Que distância separa Moçambique deste cenário?

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