DA DEMOCRACIA PARTIDÁRIA
O Artigo 74 da Constituição
Por
Teodato Hunguana
Introdução
A recente revisão constitucional, ao introduzir a designação dos candidatos a presidentes dos municípios por via da modalidade de cabeça-de-lista, veio suscitar, no processo da sua implementação pelos partidos políticos, problemas cuja relevância não se confina aos partidos envolvidos.
A recente revisão constitucional, ao introduzir a designação dos candidatos a presidentes dos municípios por via da modalidade de cabeça-de-lista, veio suscitar, no processo da sua implementação pelos partidos políticos, problemas cuja relevância não se confina aos partidos envolvidos.
O
facto de que esses problemas evidenciam essencialmente a mesma
natureza, obriga a uma reflexão séria, já que nos termos da
própria Constituição, no N.° 1 do Artigo 74, “Os partidos
expressam o pluralismo político, concorrem para a formação e
manifestação da vontade popular e são instrumento fundamental para
a participação democrática dos cidadãos na governação do país”.
Por conseguinte, a qualidade da nossa democracia há-de
necessariamente resultar, ou há-de estar à medida, da assunção
pelos partidos desses desideratos inscritos na Constituição.
Na
fase de designação dos candidatos a cabeças-de-lista ocorreram
situações em que estes resultaram, ou podem ter resultado
estatutariamente, da indicação do Presidente do partido (tal terá
sido o caso do Movimento Democrático de Moçambique - MDM), outras
em que trânsfugas de um partido caíram de pára-quedas noutro, para
logo ficarem cabeças-de-lista, ao arrepio dos militantes
naturalmente candidatáveis (tal terá sido o caso da RENAMO), e
ainda aquelas situações em que procedimentos de afastamento de
candidatos foram questionados publicamente pelas presumíveis
“vítimas” (caso do Partido Frelimo).
Considero
importante empreender-se um esforço de análise objectiva dessas
situações, formalmente diversas, mas em princípio apenas
formalmente diversas, para se identificar a natureza desses
fenómenos. Essa análise só pode ser relevante se assumir uma
perspectiva supra-partidária, porque, como disse, essas situações
prendem-se com a qualidade da nossa democracia, o que consubstancia
um interesse que é de toda a sociedade.
A
perspectiva da Constituição é justamente aquela que nos coloca na
linha dessa objectividade, já que ela, a Constituição, é, por
definição, apartidária, e assenta em valores que são,
inquestionavelmente, do consenso de toda a sociedade e de todos os
partidos.
Será,
pois nessa perspectiva, e apenas nela, que me vou situar.
Da
Constituição
Na
prática as vicissitudes do processo de designação de candidatos a
cabeça-de-lista são encaradas como questões internas de cada
partido, e, mesmo nas situações mais gritantes de inobservância
dos princípios mais elementares de democracia, assume-se uma atitude
de tolerância, de complacência ou de mansidão crítica. Próprias
de um ambiente em que, havendo tantos telhados de vidro, ninguém
quer atirar pedras.
Sendo
que no funcionamento da nossa democracia, e, diga-se, no de tantas
outras, as escolhas do eleitorado são limitadas ou condicionadas
pelas escolhas dos partidos, se estas não obedecerem a princípios
estritamente democráticos, a sociedade corre um sério risco de ser
levada a fazer escolhas não democráticas e até mesmo
antidemocráticas.
Eis
porque a Constituição não poderia ser omissa a este respeito.
Com
efeito o N.°2 do Artigo 74, que contém o princípio que transcrevi
mais acima, estabelece de forma clara que “A estrutura interna e o
funcionamento dos partidos políticos devem ser democráticos”.
Isto é, não só a “estrutura” fixada nos estatutos deve ser democrática, como o próprio “funcionamento”. Por outra palavra, a vida dos partidos, deve ser democrática.
Isto é, não só a “estrutura” fixada nos estatutos deve ser democrática, como o próprio “funcionamento”. Por outra palavra, a vida dos partidos, deve ser democrática.
Este
é um comando constitucional e, como qualquer outro comando, não é
de observância opcional mas imperativa. Nem é de carácter
programático mas vinculativo.
Da
operacionalização do comando constitucional
Assumida
a clareza do comando constitucional e a vinculação dos partidos à
sua observância, a questão que se coloca a seguir é a de como se
operacionaliza a sua obrigatoriedade.
Em
princípio devemos encontrar a resposta na lei ordinária, a qual
pode ser omissa, esparsa ou lacunosa, sobre a matéria.
Vejamos
então o que a Lei N.°14/92, de 14 de Outubro, estabelece sobre este
assunto:
O
Artigo 3° (Regras básicas) desta Lei, em consonância com a
Constituição, preconiza no N.°1, alínea h), “não ter natureza
antidemocrática”, no N.°2, alínea a), “definir os seus
objectivos políticos, sua estruturação interna e seu modo de
funcionamento”.
Na
alínea c) do N.°2 do Artigo 6°, estabelece-se que os estatutos
devem conter, entre outras indicações, “os objectivos e
princípios por que se rege o partido, designadamente o princípio da
eleição democrática e de responsabilidade dos titulares dos seus
órgãos”.
Estes
e outros requisitos são submetidos ao crivo do Ministério da
Justiça no requerimento para a constituição dos partidos, e de
cuja decisão cabe recurso para o Tribunal Administrativo.
Ora,
uma vez aprovados os Estatutos contendo aqueles requisitos, que
consubstanciam os princípios fixados no Artigo 74 da Constituição,
a questão que se coloca, e que é da maior relevância, é a
seguinte: o que acontece se, na prática, esses princípios
constitucionais e legais não são observados?
Das
competências do Conselho Constitucional
Como
disse atrás, em matéria de democraticidade, as questões que se
suscitam na vida dos partidos têm sido encaradas como estritamente
internas, e relegadas ao seu foro privado. Mas tal não passa de mero
equívoco, porque se assim fosse delas não cuidaria a Constituição
e ainda menos a lei ordinária.
Por
isso a Constituição previu, entre as competências do Conselho
Constitucional, na alínea f) do N.°2 do Artigo 244, a de “julgar
as acções de impugnação de eleições e de deliberações dos
órgãos dos partidos políticos”.
Significa
que, quando ocorrem situações litigiosas na vida dos partidos, elas
podem encontrar solução satisfatória e pacífica dentro dos
próprios partidos. Mas pode dar-se o caso de não haver resposta
consensual.
Quando
estão em causa ou em litígio prerrogativas de membros,
individualmente, é normal invocar-se a disciplina partidária para
se pôr fim ao litígio. E normalmente os membros, de boa ou de má
vontade, acabam por se submeter, convencidos da justeza das soluções
ou convencidos de que não existe outra via, de que não há nada a
fazer. Sobretudo convencidos de nada poderem fazer contra o peso
esmagador dos aparelhos partidários.
Ora
a disciplina partidária não é algo que se sobreponha aos direitos
dos membros, a tal ponto que, em nome dela a eles se deva renunciar.
Sobretudo não pode a disciplina partidária servir para encobrir
violações dos estatutos e para calar quem seja prejudicado por tais
violações.
Por
outro lado, a dimensão partidária não se pode sobrepor nem à
Constituição nem à lei, e a filiação partidária não significa
nem implica renúncia de cidadania. Antes de se ser membro de um
partido é-se cidadão, e permanece-se cidadão sempre. De tal forma
que se um membro de partido se vê prejudicado, de forma injusta e
anti-estatutária, e não consegue fazer valer o seu direito no
quadro do partido, como cidadão, ele tem a prerrogativa de requerer
ao Conselho Constitucional a reposição da legalidade estatutária,
se esta tiver sido violada.
Certamente
muitos acharão estranha a ideia de um membro pleitear contra o seu
partido. Mas na realidade não está rigorosamente em pleitear contra
o partido, mas contra decisões ou deliberações de órgãos ou de
dirigentes do seu partido.
E
isso só será estranho num clima ou numa cultura dominada pelo
endeusamento, pelo culto da personalidade ou pela usurpação dos
direitos dos membros pelos aparelhos partidários. Já num Estado de
Direito Democrático efectivo tem de ser considerado absolutamente
normal.
Assim,
nos desenvolvimentos que nos é dado observar, tanto os casos de
evidente pára-quedismo, como naqueles chamados de “democracia a
dedo”, como naqueles em que candidaturas foram afastadas “de
forma menos clara” ou de forma “não explicada”, todos eles
podiam dar lugar a impugnações junto ao Conselho
Constitucional.
Sem dúvida que teria sido do interesse da sociedade e do Estado de Direito Democrático ver tais situações esclarecidas ou decididas com toda a objectividade e transparência.
Sem dúvida que teria sido do interesse da sociedade e do Estado de Direito Democrático ver tais situações esclarecidas ou decididas com toda a objectividade e transparência.
Ao
fazer estas análises e considerações não estou dizendo algo de
estranho ou de inaudito. O Partido Frelimo, que na verdade, quer se
goste quer não, tem sido a matriz de onde os demais partidos
replicam normas e práticas, à medida das suas conveniências,
passou por fases diferentes daquela em que estão agora a ocorrer as
situações a que aludi. Apenas para fazer um breve relance que
reavive a memória dos contemporâneos e dê a conhecer aos que
vieram depois, relevemos o seguinte:
Quando
o Dr. Eneias Comiche, actual cabeça-de-lista da Frelimo para cidade
de Maputo, foi candidato a Presidente do Município, foi-o numa ampla
e concorrida Conferência Eleitoral em que disputou a designação
com um oponente de grande peso, o Dr. Teodoro Waty. Foi uma disputa
renhida que se prolongou quase até à boca das urnas. A
inquestionável democraticidade do processo conferiu grande
legitimidade ao vencedor, primeiro dentro do Partido e, depois, como
Presidente eleito do Município.
Mas,
já na tentativa legítima de renovação do mandato, o processo
obedeceu a outra norma, entretanto introduzida no Partido Frelimo: a
de que a eleição dos candidatos deixava de ser em Conferências
Eleitorais para passar a ser competência dos Comités ao nível de
cada autarquia.
Esta
alteração, certamente ditada pela necessidade de maior dirigismo
dos processos, evidenciou uma drástica redução da democraticidade
que tinha caracterizado os processos anteriores. Daí resultou que,
apesar do grande prestígio e popularidade granjeados, no seio do
Partido e na sociedade, graças ao seu desempenho, o Dr. Eneias
Comiche, na eleição restrita ao Comité da Cidade, perdeu para
David Simango.
A
evolução das regras ou dos procedimentos eleitorais no seio do
Partido Frelimo manteve-se nessa lógica até hoje. Mas é importante
referir que essa evolução não tem ocorrido sempre de forma tão
pacífica e unânime.
Recordemos
que, aquando do processo que culminou com a designação de Filipe
Nyusi como candidato da Frelimo para as últimas eleições
presidenciais, a lista fechada de três candidatos, que tinha sido
decidida pela Comissão Política, teve que ser aberta por pressão
de franjas significativas do Partido, e por força, finalmente, da
posição da Associação dos Combatentes da Luta de Libertação
Nacional (ACLLN), expressamente inconformada com o carácter fechado
dessa lista. Com a abertura conferiu-se, de algum modo e naquelas
circunstâncias, maior democraticidade ao processo.
Para dizer simplesmente que a contestação ou “rebeldia”, a que assistimos hoje, prende-se fundamentalmente com esta problemática da democraticidade dos processos e vai levar, forçosamente, ao repensar de normas e procedimentos. Porque, na minha opinião, e na de muitos outros, no contexto de uma democracia efectiva e mais ampla, certamente que não fariam sentido algum essas contestações ou “rebeldias”.
Para dizer simplesmente que a contestação ou “rebeldia”, a que assistimos hoje, prende-se fundamentalmente com esta problemática da democraticidade dos processos e vai levar, forçosamente, ao repensar de normas e procedimentos. Porque, na minha opinião, e na de muitos outros, no contexto de uma democracia efectiva e mais ampla, certamente que não fariam sentido algum essas contestações ou “rebeldias”.
Em
conclusão
É
imperioso que os partidos observem a Constituição da República,
nos seus estatutos, na sua estrutura e no seu funcionamento. Mas para
que isso se efective é imperioso que os militantes dos partidos não
percam nunca de vista que são cidadãos cujas prerrogativas não são
diminuídas nem subalternizadas pela condição de militantes. Que a
sua condição de cidadãos não é apropriada pelos partidos.
A democraticidade do funcionamento dos partidos, não é interesse privado dos partidos, antes constitui condição indispensável da democracia e interesse fundamental do Estado. Por conseguinte, não deve ser ignorada, prejudicada ou negligenciada.
A democraticidade do funcionamento dos partidos, não é interesse privado dos partidos, antes constitui condição indispensável da democracia e interesse fundamental do Estado. Por conseguinte, não deve ser ignorada, prejudicada ou negligenciada.
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