PRECISA-SE JUSTIÇA EM MOÇAMBIQUE
@verdade, 31
de Julho de 2017
Moçambique “precisa ter uma justiça imparcial e que aplique a lei, mesmo quando
contrária a interesses poderosos e a interesses especiais”, aconselha aos
colegas moçambicanos o juiz Sérgio Moro do Brasil.
O juiz Sérgio Moro, responsável pela maior investigação de corrupção no
Brasil, a Operação Lava Jato,
aconselha aos seus colegas em Moçambique a aplicarem a lei, mesmo quando
“contraria a interesses poderosos e a interesses especiais”.
Em
entrevista exclusiva ao grupo internacional de jornalismo colaborativo Investiga Lava Jato, do qual o @Verdade é parte, Sérgio Moro afirmou
que a investigação que conduz, e já levou a condenação do antigo Presidente do
Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, assim como a denúncia do actual Presidente
Michel Temer, mostra que é possível combater a corrupção: “Acho que não se deve
se perder as esperanças e passar a acreditar que a corrupção é um dado da
natureza, é algo inevitável, é algo que não possa ser enfrentado”.
Investiga Lava Jato - Pela primeira vez na história, um presidente da República foi denunciado
no exercício do mandato, decorrente principalmente da Operação Lava Jato. Como o Sr. avalia essa situação?
Sérgio Moro - Eu prefiro não fazer comentários
sobre casos pendentes e muito concretos. Existe uma série de limitações sobre
isso. Embora seja um caso que está sob outra jurisdição, eu vou ficar devendo
essa resposta. Não seria apropriado que eu fizesse qualquer comentário.
Investiga Lava Jato - O Ministro Gilmar Mendes tem sido um dos principais críticos à Lava Jato no Supremo e afirmou
recentemente que a operação criou um “direito penal de Curitiba; normas que não
têm a ver com o que está na lei”.
Sérgio Moro - Eu não faria nenhuma réplica à
crítica do Ministro. É o entendimento dele; não seria apropriado. Juízes têm
entendimentos diferentes sobre diversos assuntos. Não obstante, nos casos aqui
julgados, o que tem sido aplicado é a lei, basicamente, sem que haja qualquer
extravagância.
No caso da Operação Lava Jato, o que foi constatado
é que havia uma corrupção sistémica, espalhada, penetrante e profunda na
administração pública. E que, para a interrupção desse ciclo de crimes, era
necessário tomar algumas medidas drásticas – entre elas, por exemplo, as
prisões antes do julgamento. Mas isso sempre foi feito segundo a lei, com a possibilidade
de as pessoas insatisfeitas recorrerem às outras cortes. E essas decisões têm
sido, como regra, mantidas. Não há nenhum direito extraordinário sendo
aplicado.
Investiga Lava Jato - O contexto tornou as medidas necessárias?
Sérgio Moro - Em Novembro de 2014, por exemplo,
foi decretada a prisão preventiva de vários executivos de algumas das maiores
empresas brasileiras e da PETROBRAS. Foi algo grande. Não obstante,
posteriormente se descobriu que outras empreiteiras continuaram a pagar
vantagens indevidas a agentes públicos, inclusive da PETROBRAS. Então, a lei
prevê a possibilidade de o juiz aplicar medidas severas para prevenir uma fuga,
proteger provas, mas também para interromper o ciclo da prática de crimes.
Então, foi isso que ocorreu. Eu acho que as medidas não só foram necessárias,
mas, avaliando à distância do presente momento, foram acertadas.
O Direito
não é uma ciência exacta
Investiga Lava Jato - Há sentenças na Lava Jacto que não se baseiam apenas em documentos, mas
também em outros tipos de provas. Um exemplo é a condenação do ex-Presidente Lula
que, na sua fundamentação, aponta que os benefícios concedidos ao ex-Presidente
têm como “única explicação” a corrupção na PETROBRAS. Qual a sua posição sobre
o uso de presunções desse tipo em casos complexos?
Sérgio Moro - Sobre a sentença do ex-Presidente,
tudo o que eu queria dizer já está na sentença. Teoricamente, em qualquer
processo criminal, tem-se um conjunto de provas e o juiz vai decidir com base
nesse conjunto. Uma classificação que se faz dentro do processo penal é a prova
directa e a prova indirecta, que é a tal da prova indiciária.
Para ficar
num exemplo bem clássico: você tem uma testemunha que viu um homicídio. É uma
prova directa. Uma prova indirecta é alguém que não viu o homicídio, mas viu
alguém deixando o local do crime com uma arma fumegando. Ela não presenciou
directamente o facto, mas viu um facto do qual se infere que um suspeito é
culpado.
O juiz vai
avaliar todas as provas que existem, sejam directas ou indirectas, e vai
proferir um julgado. Não há um processo em que exista apenas um tipo de prova;
é um conjunto de provas. Não é nada extraordinário em relação ao que acontece
no quotidiano de qualquer vara criminal.
Investiga Lava Jato - O senhor concedeu recentemente a três réus que negociam delações um
tempo máximo de prisão, caso o acordo vingue. A medida foi criticada por
advogados ouvidos pela Folha, que
entenderam que isso equivalia a um estímulo à delação e que não cabia ao juízo
interferir nessa negociação. Por que o Sr. tomou essa decisão?
Sérgio Moro - Eu não ingressei em nenhuma
negociação. O acusado faz eventualmente um acordo com o Ministério Público. O
juiz, quando vai proferir a sentença, vai conceder o benefício acordado se o
acusado cumpriu a sua parte, se ele colaborou, e vai poder inclusive
dimensionar o benefício.
Naquele
caso, houve colaboração, mas não havia um acordo final. Só que o próprio
Ministério Público pediu, nas alegações finais, que fosse reconhecida uma
colaboração e dado o benefício.
Investiga Lava Jato - Mas o benefício extrapolou um processo específico. O Sr. estipulou uma
pena máxima para todos os processos a que eles respondiam.
Sérgio Moro - Eu justifiquei o que fiz na
decisão. Agora, é preciso entender que o Direito não é uma ciência exacta. Às
vezes, pessoas razoáveis divergem sobre institutos políticos. Faz parte da aplicação
do direito eventuais discordâncias. Para isso se tem a possibilidade de
recorrer.
Algumas
críticas são sempre normais. O que é perturbador são críticas pessoais, e não
críticas ao que se fez ou se faz no processo. Mas, que discordem, é natural. Num
processo, sempre alguém ganha e alguém perde.
Divulgação
das escutas de Dilma e Lula “faz parte das liberdades democráticas que as
pessoas tenham conhecimento do que fazem seus governantes”
Investiga Lava Jato - Esse tipo de decisão, sobre benefício a réus, provas indiciárias,
prisões preventivas, não faz parte de uma inflexão que a Lava Jato está trazendo ao Direito Penal?
Sérgio Moro - Não, de forma nenhuma. O que a Lava Jato revela é que a impunidade em crimes
de corrupção no Brasil não é mais uma regra. Mas não só ela; isso veio do
passado, para destacar a decisão do Supremo na acção penal 470 [do Mensalão].
Há um
crescente com relação a isso. Corrupção, sempre vai existir. Mas se espera que,
com o fim da impunidade, ela diminua. O importante é que a impunidade não seja
mais a regra para esse tipo de criminalidade tão danosa à economia, aos cofres
públicos e à própria democracia.
Investiga Lava Jato - Em algumas sentenças, o Sr. comentou sobre o evento da divulgação das
escutas que envolveram os ex-Presidentes Lula e Dilma Rousseff. Escreveu que o
problema foi o conteúdo, que revelava tentativas de obstruir investigações e
uma intenção de actuar contra o que foi apurado, com grande poder político. A
partir dessas afirmações, é possível entender que a divulgação desse conteúdo
tinha como objectivo proteger a Lava Jato?
Sérgio Moro - A escolha que foi adoptada desde
o início desse processo, a partir do momento em que isso não fosse prejudicial
às investigações, era tornar tudo público. Dar a mais ampla publicidade às
acções penais, às provas, ao julgamento. Primeiro, porque a Constituição
brasileira assim determina: o julgamento tem que ser público. Segundo, porque
faz parte das liberdades democráticas que as pessoas tenham conhecimento do que
fazem os seus governantes.
Se nós temos
processos envolvendo crimes de corrupção, que basicamente é abuso de poder para
ganho privado, nós compreendemos desde o início que era necessária a
publicidade.
O que
aconteceu nesse caso [das escutas de Dilma e Lula] não foi nada diferente do
que aconteceu nos demais. As pessoas tinham direito de saber a respeito do
conteúdo daqueles diálogos. E por isso que foi tomada a decisão do levantamento
do sigilo.
Um efeito
indirecto ao dar publicidade para esses casos foi proteger as investigações
contra interferências indevidas. Afinal de contas, são processos que envolvem
pessoas poderosas, política e economicamente. Claro que a lei não permite que
haja obstrução, mas, na prática, pode haver tentativas. Então, tornar tudo
público também acaba funcionando como uma espécie de protecção contra qualquer
obstrução à Justiça. E acho que isso é muito importante.
Respeitadas
as críticas contra dar publicidade a esses factos, foi seguida a Constituição. Dentro
de uma democracia liberal como a nossa, é obrigatório que essas coisas sejam
trazidas à luz do dia.
Investiga Lava Jato - Então, naquele caso específico, funcionou como uma defesa.
Sérgio Moro - Eu não me referiria a nenhum caso
específico. Esse foi o procedimento padrão, adoptado desde o início do caso.
Mesmo antes, nós já fazíamos assim.
O que ocorre
é que, pela dimensão do caso e pela atenção que a imprensa e a população deram
ao caso, e pela potencialização dessa publicidade pela utilização do processo
electrónico, isso ganhou uma dimensão maior do que acontecia no passado.
Não é
absolutamente necessário que os casos fiquem dependentes somente das provas que
as autoridades brasileiras compartilharem
Investiga Lava Jato - Na Lava Jato há mais de 150
acordos de delação premiada e muitos dos colaboradores ficarão presos por dois
ou três anos. Daqui a pouco, parte deles vai voltar às ruas. Quando isso
acontecer, não pode passar, num futuro próximo, uma sensação de impunidade, de
que o crime compensa?
Sérgio Moro - A colaboração de criminosos vem
com um preço: ele não colabora senão pela obtenção de benefícios. Isso faz
parte da natureza da colaboração. Muita gente não tem acordo nenhum. Continua
respondendo aos processos, alguns foram condenados, estão presos. Essas pessoas
também vão sair da prisão um dia. Faz parte do sistema.
O que eu
acho que tem que ser comparado é que, no passado, como regra, o que havia era a
impunidade. As pessoas nem sequer sofriam as consequências dos seus actos
criminosos. Em muitos casos, eles nem sequer eram descobertos. A sensação de
impunidade era ainda maior. Embora as pessoas talvez não soubessem detalhes,
elas tinham uma noção do que acontecia dentro dos gabinetes de alguns agentes
públicos.
Investiga Lava Jacto - Mas um acordo com uma empreiteira, ou com um ex-Director
da PETROBRAS, não seria suficiente para descobrir tudo isso?
Sérgio Moro - Olha, se estivéssemos falando de
um crime, apenas... Mas não é um caso que envolve um crime, em que dezenas de
pessoas fizeram acordo. Na verdade, nós temos dezenas e centenas de crimes. Por
isso que acabou sendo necessário, ao longo das investigações, fazer os acordos
para obter provas e informações de diversos esquemas criminosos, com mais de
uma pessoa. Seria diferente se fosse um assalto a banco, por exemplo.
O que
aconteceu aqui foram centenas de crimes, como se fossem centenas de roubos a
bancos, envolvendo muitas vezes quadrilhas diferentes e pessoas diferentes. Não
seria uma pessoa que teria todas as informações necessárias.
Investiga Lava Jato - A corrupção relevada na Lava Jato
se tornou um fenómeno transnacional. No caso do México, nós estamos muito
preocupados, porque não há nenhum efeito, nenhuma acção visível sobre o
assunto. Qual a sua opinião sobre um país em que a corrupção está tão
arraigada, mas nada foi feito, enquanto em outros países há um cisma político?
Sérgio Moro - É muito difícil eu fazer qualquer
avaliação sobre o que ocorre nos demais países, porque eu também não tenho
detalhes de tudo o que acontece. A globalização tem um preço: traz algumas
vantagens e desvantagens económicas, mas também acaba levando a esse fenómeno
da trans-nacionalização na actividade criminal.
De facto,
foi constatado que empresas brasileiras eventualmente pagaram vantagens
indevidas, ou “coima”, para autoridades públicas de outros países. O que nós
temos feito aqui no Brasil é compartilhar essas provas. Se o crime é
transnacional, o enfrentamento da criminalidade também tem que ser
transnacional, e tem que envolver mecanismos de cooperação.
As
autoridades brasileiras, como regra, têm estado dispostas a compartilhar essas
provas. Cabe aos outros países tentar extrair delas o melhor, instaurando suas
próprias investigações e responsabilizando os eventuais culpados, se
identificados.
Há uma
expectativa, até uma torcida, que isso tenha reflexos nesses outros países.
Afinal de contas, o enfrentamento do crime é uma demanda universal, um desejo
universal. Mas eu realmente não tenho condições de fazer críticas a autoridades
de outros países acerca do que estão ou não estão fazendo com as provas, porque
eu desconheço detalhes. Mas eu tenho a expectativa de que também as autoridades
do México possam desenvolver bons casos criminais, utilizando essas provas
compartilhadas ou realizando suas próprias investigações.
Não é
absolutamente necessário que os casos fiquem dependentes somente das provas que
as autoridades brasileiras compartilharem. Eles podem se desenvolver muito mais
com um trabalho de investigação a partir disso.
Justiça tem
que se basear nas provas e na lei, e ser cega para essas questões partidárias
Investiga Lava Jato - A essa altura da investigação, é possível dizer que a empreiteira Odebrecht tinha como prática financiar
campanhas eleitorais no Brasil. Eu gostaria de saber se, com base nas
informações a que o Sr. teve acesso, isso era uma prática comum e parte do
esquema de corrupção das empresas brasileiras, especificamente da Odebrecht.
Sérgio Moro - Considerando os casos já
julgados, o que se pode dizer é que há situações em que empreiteiras
brasileiras fizeram acertos de corrupção e pagaram propina (N.E.: suborno) a
agentes políticos, mediante doações eleitorais. Isso acontecia tanto com
doações informais, ou seja, ilegais, não registadas; quanto eventualmente por
doações legais, ou registadas.
Por exemplo:
tem um caso já julgado que envolvia um ex-senador brasileiro [Gim Argello],
nomeado membro de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar
os próprios factos envolvidos na Operação
Lava Jato. E ele, em vez de realizar o seu trabalho de investigação,
aproveitou a oportunidade para pedir dinheiro a empresários brasileiros, para
que eles não fossem investigados pela comissão.
No pagamento
desses valores, entre os meios utilizados, houve também doações eleitorais,
inclusive registadas. A doação empresarial no Brasil era permitida até 2015;
não havia nenhum problema nisso. Mas, se a doação, ainda que legal, faz parte
de um acerto de corrupção, ou seja, tem uma contrapartida específica, isso pode
ser enquadrado como crime de corrupção.
Como foi
nesse caso: o senador deixou de cumprir o seu papel de convocar o empresário
para um depoimento em troca de dinheiro, que foi repassado como doações legais.
Entre as empreiteiras investigadas nesse caso, está a Odebrecht. E eles mesmos já falaram publicamente em interrogatórios
que repassaram valores de suborno mediante doações eleitorais. Então, é uma
forma de se praticar esse crime.
Investiga Lava Jato - Quando a Justiça tem informações de diversos ex-Presidentes e candidatos
presidenciais, por onde se deve começar a investigar e punir? Há uma demanda de
que todos sejam tratados por igual. Mas por onde começar quando há quatro ex-Presidentes,
por exemplo, para que não haja a suspeita de que a alguns se investiga, e a
outros não?
Sérgio Moro - Aqui no Brasil, por vezes, há uma
crítica - a meu ver, equivocada - de que a Justiça estaria actuando de maneira
selectiva, sendo mais dura em relação a determinadas agremiações partidárias ou
a políticos de determinado perfil do que em relação a outros.
Uma crítica
muito semelhante foi feita na Operação
Mãos Limpas, na Itália. O trabalho dos magistrados italianos acabou
atingindo mais fortemente a democracia cristã e o Partido Socialista Italiano e
criticava-se os magistrados dizendo que estavam a poupar o Partido Comunista.
Mas, lá como
cá, as investigações e processos são conduzidos com base em factos e provas. O
foco aqui no Brasil, pelo menos aqui em Curitiba, sempre foi a PETROBRAS. O
esquema criminoso na PETROBRAS envolvia pagamentos de subornos a agentes da
estatal e a agentes políticos que sustentavam esses executivos nas suas
posições. E esses agentes políticos eram do Governo, dos partidos que formavam
a base do Governo. Então, é natural que o caso seja inclinado a esses partidos.
Não
obstante, existem partidos de determinados perfis que nem sempre foram aliados
[do Governo]. Por exemplo, apesar das críticas de que há uma intensidade maior
em relação a agentes do PT, temos preso e condenado um ex-parlamentar, o ex-Presidente
da Câmara [Eduardo Cunha], que era tido como inimigo do PT. Então, a meu ver,
as críticas são equivocadas. É evidente que a Justiça tem que se basear nas
provas e na lei, e ser cega para essas questões partidárias.
O que as
empresas brasileiras fizeram foi terrível, reprovável, mas certamente elas não
foram as únicas que pagaram vantagem indevida pelo mundo
Investiga Lava Jato - A condição para receber as provas da Odebrecht
é que os procuradores de outros países não as usem para processar, civil ou
penalmente, a empresa ou seus directores, em função do acordo de leniência e de
delação premiada firmados no Brasil. O quanto isso pode afectar a busca da
verdade e da justiça nos outros países?
Sérgio Moro - Nós tivemos um caso bem interessante
no passado, com uma série de “doleiros” brasileiros, envolvidos em operação de
lavagem de dinheiro, que mantinham contas secretas numa instituição financeira
nos Estados Unidos da América. O caso envolveu investigações tanto aqui quanto
nos Estados Unidos da América. E, no nosso caso, acabou sendo ouvida como
testemunha a gerente desse banco. Era uma pessoa que também tinha
responsabilidade criminal, porque havia dado abrigo àquelas contas e facilitado
operações de lavagem de dinheiro.
Não
obstante, ela havia feito um acordo de colaboração com as autoridades
norte-americanas e concordou em testemunhar aqui sob a condição de não ser
processada no Brasil por esses mesmos factos. Isso foi respeitado. Então, é
importante que haja observância, na cooperação internacional, das condições que
são colocadas.
[No caso da Operação Lava Jato], a compreensão que
se tem é que esses crimes foram revelados no âmbito de uma colaboração com as
autoridades brasileiras. Interessam a outros países. Mas, se os colaboradores
forem processados sem qualquer limite nesses países, isso coloca em risco os
próprios acordos aqui no Brasil - daí a necessidade de se ter uma certa
protecção.
Normalmente,
o Brasil tem compartilhado as provas com esse condicionamento. O que não impede
que os outros países, caso desenvolvam sua investigação sem a partilha de
prova, rejeitem essa condição e processem todo a gente. Mas, se a prova vem dos
colaboradores do Brasil, normalmente tem sido colocada essa condição, para
preservar os próprios acordos no Brasil.
Investiga Lava Jato - Mas a sensação que se tem na sociedade peruana, e também há uma situação
similar na República Dominicana, é que finalmente se está submetendo as
autoridades públicas ao processo penal, mas que seria necessário submeter
também os empresários e executivos que pagaram pela corrupção. A ideia é que
todos deveriam ser processados da mesma forma.
Sérgio Moro - Cada caso é um caso. Tem que se
verificar o que pode ser feito sem a cooperação. Agora, o ideal seria que essas
empreiteiras que pagaram “coima” noutros países entrassem em acordo com as
autoridades desses países, resolvendo a questão de uma forma mais directa, sem
necessidade de intermediação.
Tem que
deixar bem claro o seguinte: o pagamento de suborno, propina (N.E. suborno),
“coima” é algo terrível, reprovável e tem que ser reprimido. Mas, por outro
lado, tem que se louvar a atitude dessas empresas quando resolvem colaborar.
Isso é digno de elogios e de benefícios, se a lei assim comportar. Até porque
há uma expectativa de que esses acordos signifiquem não só a revelação de
crimes pretéritos, mas uma mudança de postura das empresas.
O que não me
parece razoável é que, quando elas pagavam propina (N. Ed. suborno) e faziam
isso em segredo, eram tratadas de maneira muito favorável pelas autoridades; e,
de repente, quando resolvem revelar os seus crimes e alterar as suas práticas,
passem a ser tratadas de maneira rigorosa. Não é bem esse o caminho.
Outra coisa
que acho importante, aproveitando a questão: o que as empresas brasileiras
fizeram foi terrível, reprovável, mas certamente elas não foram as únicas que
pagaram vantagem indevida pelo mundo, inclusive nesses países. Há uma grande
possibilidade de que assim tenham feito no âmbito de um ambiente corrupto, para
o qual elas contribuíram, mas do qual não são a única causa.
Essas
investigações também são uma oportunidade para expandir as apurações e
identificar outras empresas estrangeiras e nacionais, desses respectivos
países, que também pagaram vantagens indevidas e se envolveram nessas práticas.
O que foi constatado nas investigações no Brasil é que a corrupção era a regra
do jogo, e isso envolvia não uma ou duas empresas, mas várias. E também
empresas estrangeiras pagaram propina (N.E. suborno) a agentes brasileiros da PETROBRAS.
É importante
apurar as responsabilidades, mas a meu ver também não é correcto vilipendiar as
empresas brasileiras como se fossem as únicas responsáveis ou as únicas
empresas no mundo que pagam propinas (N.E. subornos). Certamente, se procurar,
vai se encontrar factos envolvendo outras empresas, e eventualmente empresas do
mesmo país das autoridades que receberam valores.
Não se deve
se perder as esperanças e passar a acreditar que a corrupção é um dado da
natureza, é algo inevitável, é algo que não possa ser enfrentado
Investiga Lava Jato - Até o início das investigações da Lava
Jato, a Odebrecht e o ex-Presidente
Lula eram considerados, pelo povo de Moçambique, benfeitores que foram ajudar a
impulsionar o desenvolvimento do país. Como o Sr. se sente, de certa forma,
desfazendo essa imagem?
Sérgio Moro - Infelizmente ainda não estive em
Moçambique, não tive a oportunidade mas gostaria de conhecer o país. Essas
empresas foram realizar negócios nos outros países, claro que isso gera um
ganho para os países que recebem o investimento mas certamente fizeram isso
para obter ganhos e lucros.
O facto de essas
empresas terem pago suborno para autoridades públicas nesses países é algo
reprovável, tem que ser apurado e os responsáveis punidos mas isso também não
desmerece tudo o que foi feito, são coisas que tem de ser separadas, se esses
crimes pretéritos forem apurados e houver responsabilização e a empresa de
facto se comprometer a mudar o seu comportamento, o seu padrão de conduta, isso
vai representar um ganho não só para ela mas também para esses países nos quais
esses investimentos permanecerem, porque vai ter investimento e uma prática de
negócio mais limpa.
Investiga Lava Jato - Se a Procuradoria de Moçambique não solicitar, por cooperação
internacional, as delações da Odebrecht,
há algum procedimento para que os jornalistas possam aceder esses documentos?
Sérgio Moro - Essa é uma questão que talvez se
tenha que enfrentar no futuro, mas eu não tenho uma resposta para ele neste
momento. A expectativa é que essas provas possam ser compartilhadas com as
autoridades de todos os países nos quais esses crimes possam ter sido cometidos
e que possam ser extraídas as consequências judiciais desses factos.
Não
obstante, se isso não acontecer, acredito que nós vamos ter de reflectir no que
fazer a esse respeito. Claro que a responsabilidade das apurações são das
autoridades dos países, mas se seria uma alternativa apropriada e válida
simplesmente dar publicidade a esse material é uma pergunta muito relevante e é
algo que é objecto de preocupação. Mas eu não tenho uma resposta, não tenho uma
posição em relação a isso neste momento.
Investiga Lava Jato - Se o Sr. pudesse aconselhar os seus congéneres em Moçambique, um país
que também é muito afectado pela corrupção até o topo, o que o Sr. diria? Que
conselho o Sr. daria aos moçambicanos?
Sérgio Moro - Esse relativo sucesso no Brasil
do enfrentamento da corrupção é algo relativamente recente, eu vejo isso como
um desdobramento natural da democracia brasileira.
Nós tivemos
problemas no passado muito graves, envolvendo as nossas liberdades e a nossa
democracia, e a partir da restauração democrática nós temos condições de
fortalecer as nossas instituições. Parte desse fortalecimento passa por aquilo
que a gente chama de Estado de Direito e isso envolve também a necessidade de
que as pessoas respondam, independentemente do seu poder, económico ou
político, respondam pelos seus actos quando praticam crimes. Precisa realmente
ter uma justiça imparcial e que aplique a lei mesmo contrária a interesses
poderosos e a interesses especiais, mas isso é relativamente recente no Brasil.
Não estou a
dizer que isso começou com a Lava Jato,
pelo contrário mas a Lava Jato faz parte desse processo de
amadurecimento. Não obstante, no passado quando a impunidade, pelo menos desses
crimes era regra, isso também gerava um sentimento das pessoas de descrédito na
democracia e isso afectava as pessoas em geral, mas também aquelas que estão
envolvidas por exemplo no processo judicial, polícias, procuradores e juízes. E
talvez o caso recente do Brasil indique que é um quadro que é passível de
mudar, então acho que não se deve se perder as esperanças e passar a acreditar
que a corrupção é um dado da natureza, é algo inevitável, é algo que não possa
ser enfrentado.
O Brasil tem
dado passos firmes no enfrentamento da corrupção, claro que essas revelações
são tristes, claro que essas revelações nos aborrecem, mas esse é o
procedimento de cura a meu ver. Não que o enfrentamento da corrupção as custas
da Justiça por si só vai resolver esses problema, mas é um sintoma positivo. E
não é só o caso do Brasil, tem outros casos no mundo de países que saíram de um
quadro de corrupção sistémica e passaram paulatinamente a melhorar no que se refere
ao enfrentamento da corrupção.
Tem o caso
famoso sempre citado de Hong Kong, existe o caso da Geórgia, outrora
considerado um país quase governado por gangsters
mas que deu passos significativos, a Croácia, vemos esses movimentos mais
recentes na Roménia.
Então tudo
isso significa que é possível mudar, então a primeira questão que eu colocaria
para qualquer pessoa, que eventualmente vive num país em que parece dominado
pela corrupção, eu não estou falando que esse é o caso só no geral, é nunca
perder as esperanças e ter presente que, com a acção, as instituições podem
reagir, não é uma doença natural esses esquemas de corrupção sistémica.
Eu sou um
magistrado profissional e vou continuar na Justiça
Investiga Lava Jato - O quão importante é, no combate à corrupção no Brasil e no mundo, o
papel do jornalismo investigativo e do trabalho colaborativo entre jornalistas?
Sérgio Moro - Eu concordei em dar essa
entrevista especialmente em homenagem ao trabalho de jornalistas investigativos
que resolveram actuar de maneira cooperativa. Eu tenho presente a grande
importância do trabalho não só da imprensa livre, mas especificamente de
jornalistas investigativos.
No caso da Operação Lava Jato no Brasil, talvez o
protagonismo tenha sido mais centrado no trabalho dos policiais e do Ministério
Público. Mas nós temos episódios pontuais de factos revelados pela imprensa e
que se mostraram muito relevantes para a investigação. É fundamental a
liberdade de imprensa, de poder publicar informações e factos relativos a más
condutas por parte de autoridades públicas. Sem isso, não seria possível que
esse caso tivesse chegado até onde chegou.
A minha
expectativa é que esse trabalho seja mais uma evolução no Brasil no sentido de
que a impunidade desse tipo de criminalidade, da alta corrupção, não é mais a
regra. E que isso, de alguma maneira, leve à diminuição da corrupção. O que
leva ao fortalecimento não só da economia brasileira, porque diminuem-se os
custos decorrentes da corrupção, e esses custos são enormes; mas principalmente
ao fortalecimento da democracia.
Hoje, e isso
é um mal mundial, há um certo sentimento de perda de fé no regime democrático.
E isso é péssimo. Às vezes, parte dessa incredulidade decorre do facto de as
pessoas verem más condutas por parte dos seus governantes, sem que disso sejam
extraídas as consequências próprias. Quando há um enfrentamento da corrupção,
quando há a aplicação da lei nesses casos, isso fortalece a crença e a fé das
pessoas no regime democrático.
Como o
Brasil tem dado passos firmes nesse sentido, a expectativa que eu tenho é que
haja um fortalecimento da nossa economia e da nossa democracia. Não só
internamente, mas que isso leve a uma imagem mais favorável do Brasil na
comunidade internacional. O Brasil como um país que leva a lei a sério, e não
onde as pessoas estão habituadas a contornar suas obrigações legais.
Investiga Lava Jato - Planos de carreira depois que acabar a Lava Jato?
Sérgio Moro - Essa é uma pergunta recorrente, e
posso dizer com muita clareza que não existe nenhuma pretensão política. Eu sou
um magistrado profissional e vou continuar na Justiça.
Investiga Lava Jato - Seria legítimo se alguém ligado à investigação da Lava Jato quisesse ocupar
esse vácuo político?
Sérgio Moro - Eu falo por mim. A vida é muito
complexa; as pessoas fazem suas escolhas e é muito difícil de avaliar,
especialmente quando se fala em abstracto. Eu coloco a minha posição.
NOTA: A entrevista faz parte do Projecto Colaborativo “Investiga Lava Jato”
composto pelos seguintes Jornalistas e meios de comunicação: Argentina: Emília Delfino – Perfil; Angola:
Rafael Marques - Maka Angola; Brasil: Flávio Ferreira (coordenação do projecto)
- Folha de S.Paulo; Colômbia: ColombiaCheck/Consejo
de Redacción - Ginna Morelo, Esteban Ponce de León (análise de dados) e Óscar
Agudelo; Equador: Christian Zurita - Mil Hojas; El Salvador: Jimmy Alvarado -
El Faro; Guatemala: Daniel Villatoro - Plaza Pública; México: Daniel Lizárraga
e Raúl Olmos (Mexicanos contra la Corrupción y la Impunidad); Moçambique:
Adérito Caldeira - Jornal Verdade; Panamá: Sol Lauría (com suporte de dados da
Iniciativa Regional para el Periodismo de Investigación en las Américas de
ICFJ/Connectas); Peru: Milagros Salazar - Convoca (coordenação do projecto),
Aramís Castro (análise de dados), Óscar Libón, Miguel Gutiérrez, Mariana
Quilca, Sandro Michelini, Orlando Tapia e Víctor Anaya (análise de dados e
desenvolvimento web). Venezuela Lisseth Boon (Runrunes) e Jesús Yajure (El
Pitazo).
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